sábado, 17 de maio de 2008

Especial Western

www.multiplot.wordpress.com

Nosso primeiro especial, sobre o gênero mais delicioso do cinema, já está no ar.

Anuncio, portanto, que fecho este espaço e publico tudo por lá a partir de hoje.

Abraço e até.

terça-feira, 13 de maio de 2008

New Rose Hotel (Abel Ferrara, 1998)

Ferrara trancou New Rose Hotel em um universo desparametrizado, moderno-futurista e de energia corporativa, mas seguindo uma espécie de cinema tão improvável quanto pessoal, sempre conduzida por obsessões e fortalecida em torno da tenuidade da imagem, tão frágil e inconcreta quanto à encenação dilatada por entre as relações pessoais deste jogo de enganação sem meios e sem fins. E é impressionante como o fato de se passar quase todo – ou todo mesmo – entre quatro paredes transforma cada milésimo de segundo filmado em uma imagem de significado ofuscado, não apenas pela própria natureza duvidosa das ações que constituem as nuances de interesses e de gradação de poder das três personagens principais em suas inter-relações – Christopher Walken, genial como sempre, junto do misterioso Willem Dafoe, o centro de New Rose Hotel – ou seria New Rose Hotel o centro de Willem Defoe? – e Asia Argento, a sensualidade em pessoa e a prova de que o forte de Dario nem era o cinema, era a procriação – como também pelo fato de reproduzir conscientemente a submersão do filme em um universo incomum, porém jamais deduzido – a não ser através de pequenas nuances, que normalmente fundamentam o discurso de dúvida por sobre a imagem que Abel sutilmente constrói através da captação de ações com os mais diversos meios visuais.

Mas o controle sobre este universo não poderia ser mais seguro, mesmo com toda a incompreensão que brota de um conjunto de medidas tão simples – a ação praticamente inexiste em New Rose Hotel; o que interessa mesmo são a imagem e a superfície em carência de profundidade. E, embora escolha certas prioridades, cada novo tema proposto em diálogo concede aos rumos uma incerteza ainda maior, mesmo que nada seja tão desconcertante quanto à maneira como Ferrara finalmente explicita seus interesses com a desfragmentação lenta e misteriosa daquela pequena realidade. Aliás, poucas coisas são tão imprevisíveis quanto descobrir que New Rose Hotel atinge o ápice no momento em que finalmente parecia desenhar um princípio material para a ação, mesmo que tudo aquilo que havia sido construído antes tivesse uma resolução – que mais parecia um reinício, nova motivação – em funcionamento. Alguns podem considerar auto-indulgência, como bem comprova a falta de simpatia do público para com o filme – nota 4 no IMDB, pouca exibição no cinema na época [nem passou no Brasil], etc., mas parece muito mais um equívoco de interpretação – e o filme é o maior culpado mesmo, já que a todo o tempo brinca com a leitura das imagens e nem se importa de pedir desculpas.

Porque, a partir do momento em que Dafoe adentra aquela simbólica janela dum quarto de um mísero hotel chamado New Rose, procurando o último refúgio e à espera de ser descoberto por seus perseguidores, quando finalmente chega ao ponto-limite, Ferrara mostra que seu filme, no ápice, no clímax, vai andar pra trás. Sinceramente, é coisa que eu nunca havia visto antes, e não se pode negar que há um grande tormento em perceber que a linearidade da estória alcança um tom de ciclicidade completamente irreversível, que elimina qualquer resquício de continuidade. Ferrara se livra do presente e do futuro e concentra os últimos 30 minutos no mais puro estado preterital, não meramente do personagem, como também do espectador, que passa a reviver junto dele tanto os momentos filmados quanto aqueles que foram sobrepostos pelas elipses temporais dos principais encontros anteriores – mas que, em suma, eram sabidos, embora incompreendidos -, menos numa busca de julgar os porquês, mais como forma de esclarecer que o próprio filme jamais fez uso da imagem completamente cristalina, seja ela física [e os constantes slowmotions alienígenas, além das próprias filmagens diegéticas, sob câmeras de vigilância e etc, dão o tom certeiro] ou especificamente substancial, o que, aliás, deixa o mistério em torno da prostituta ainda mais acentuado.

Se algum filme feito nos últimos 20 anos for tão bom quanto New Rose Hotel, por favor, me avisem.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Novo Projeto

Pras almas - penadas ou não - que lêem este espaço.
Ontem - e justo no dia do meu aniversário - eu e alguns amigos inauguramos um novo espaço, que se não começou do jeito que queriamos, devido a imprevistos, tentará galgar lentamente um lugar dentro do universo dos blogs - construir um site ficou realmente inviável.
Além da ajuda óbvia pra divulgação, peço que dêem uma passada por lá sempre que puderem. A equipe ainda não está bem definida, e como começamos ontem, também tem pouco material, mas com o tempo vamos engordando mais o arquivo e colocando no ar coisas que já temos em vista.
That's it.

domingo, 11 de maio de 2008

Cupido é Moleque Teimoso (The Awful Truth; Leo McCarey, 1937)

Poupando elogios ao maior ator de todos os tempos, The Awful Truth é uma delícia. Produto típico da ‘screwball comedy’ recheado de momentos hilários e um desfecho muito bonito. E a direção de McCarey, além de dar ritmo, tem algumas soluções visuais ótimas, bastante inventivas – repetidas depois, mas que se foda. Grande filme.

Tragam-Me a Cabeça de Alfredo Garcia (Bring Me the Head of Alfredo Garcia; Sam Peckinpah, 1974)

À época das filmagens de Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia, todos já conheciam Peckinpah como um bêbado chato e irresponsável, que estourava orçamentos e prolongava o período de produção dos filmes. O estigma acabou fechando-lhe as portas dos grandes estúdios, fazendo com que partisse para o México e trabalhasse com uma equipe toda de chicanos. O resultado dessa aventura é uma das mais sinceras e amargas obras-primas de um dos grandes gênios do cinema, que transgride em sua visão temas como a cobiça, o tédio, o amor, o sonho, o remorso, a vingança e o senso de justiça de um homem que se reconhece sem direção.

Inegavelmente, uma miscelânea tipicamente peckinpahkiana, permeada com um clima de desolação opressivo através de uma jornada pessimista e recheada com alguns dos momentos de maior intensidade de sua filmografia. Poucas coisas são tão tocantes quanto ver o casal debaixo daquela árvore traçando planos para o futuro, na mesma intensidade em que outras poucas são tão cruéis quanto o rastro de morte que o protagonista, em atuação fora de série de Warren Oates [que praticamente jamais tira aquela porra de óculos escuros, e que eram do Peckinpah, aliás – metalinguagem das grandes], deixa pra fazer valer seu código de honra.

Sem tempo pra maiores comentários, mas é sensacional.

Suspíria (Dario Argento, 1977)

Um grande exemplo de vitória da forma sobre o conteúdo, num surto absurdo de variação de cores que, em certos momentos, chegam a adquirir caráter quase lisérgico em sua participação imprescindível na composição atmosférica. A grande sacada de Suspíria é abusar da soturnidade que o conceito de universo-fechado garante à mansão onde são desenvolvidos os principais fatos, transformando a escola em uma caixinha de música macabra e embalada pela trilha-sonora genial dos ‘Goblins’, praticamente a mãe desse potencial todo, junto da direção de arte quase plástica de tão exagerada – o que, no caso, fica como um grande elogio – que dá vida à imaginação interminável do Argento ao construir soluções visuais surpreendentes a todo o momento.

Os 15 minutos iniciais, aliás, podem ser considerados facilmente como um dos melhores, senão o grande momento artístico do diretor, em especial naquela seqüência de morte obraprimística que encerra o prólogo e deixa o espectador aceso e sedento por mais. Uma pena, portanto, que esse ‘mais’ demore tanto a chegar, e no final a principal característica do Argento, que são as mortes bem elaboradas e sangrentas, são deixadas de lado em detrimento à construção de uma estória boba de bruxaria– e eu tenho um problema muito sério com bruxas; não consigo me impressionar/envolver nem um pouco com o tema - embora ele gere, em Suspíria, pelo menos uma sacada absolutamente sensacional, que é a amiga morta da protagonista ser ressuscitada pra matá-la.

Mesmo assim, um ótimo filme, em especial pelo visual e pela mistura bem interessante de diferentes formas de se conseguir um momento de tensão, vagando referencialmente entre elementos de Os Inocentes, como a utilização do espaço e do vazio para transmitir insegurança e pavor – o ápice disso é o cego isolado naquela imensidão negra antes de ser assassinado pelo cachorro -, até Os Pássaros, nessa mesma seqüência, com a subjetiva acompanhando o campo de visão de um pássaro, entre muitas outras – vai de Hitchcock a De Palma, como faz habitualmente, em questão de segundos, além de abusar de diversos clichês do gênero. Mas não dá pra sair plenamente satisfeito, já que Suspiria tinha potencial de sobra pra ser a grande obra-prima do Argento, e a oportunidade é desperdiçada por bobagem. Uma pena.

sábado, 10 de maio de 2008

Os Chefões (The Funeral; Abel Ferrara, 1996)

Os Chefões pode insinuar, em alguns momentos, um diálogo fácil com outros filmes sobre a máfia, como O Poderoso Chefão e Era Uma Vez na América, mas não recordo de ter visto em algum outro filme um desejo tão intenso de dilacerar os dilemas morais e as fraquezas dos ‘homens de preto’ do submundo do crime como Ferrara o faz neste conto fúnebre de natureza vingativa. É um filme muito, muito simples, que se faz complexo justamente pela crueza que utiliza para retratar o desmorono instantâneo que uma tragédia anunciada proporciona numa família clássica das relações mafiosas – instituição base de muitos filmes do gênero.

O filme se passa no dia do funeral de um dos três irmãos, assassinado, e segue pontuado por fragmentos do passado e do presente que abandonam integralmente a visão romântica da máfia, instalando a fragilidade sentimental e ambígua em meio às relações de conflito interno e externo – que em momentos se unem para finalmente por à prova a explosão individual e coletiva em conseqüência da descrença da qual bebem as duas figuras centrais, os personagens de Christopher Walken [sublime, perfeito, como sempre – aliás, ainda acho que esse rosto foi moldado, não pode ter nascido pronto. Uma face e um olhar que comunicam tudo] e Chris Penn.

E é realmente indescritível a sensação que alguns dos momentos-chave provocam, num embrulho de fúria e remorso, sempre embalado pela dor que os ambientes escuros e os enquadramentos feios e fechados conseguem brilhantemente aproximar de quem vê. Duas seqüências, aliás, estão entre as que eu mais gosto de todo o gênero, respectivamente a do embate entre Walken e o rapaz que assassinou seu irmão, exemplo perfeito daquilo que eu disse há pouco sobre a expressão do ator, e o momento em que Chris Penn chega bêbado em casa e entra em conflito com a esposa. Penoso e arrepiante.

Revisto, esse filme de Ferrara ficou ainda mais genial.

O Pássaro das Plumas de Cristal (Dario Argento, 1969)

Um Blow Out muito piorado, com alguns bons momentos - sendo o principal deles a cena da loirosa sozinha no apartamento espreitada pelo assassino, de uma tensão incrível. Mas é bem mal resolvido, embora visualmente caprichado e recheado com as principais obsessões do Argento. O legítimo rascunho e o mais Hitchcock dos Argentos - legal os dois estremos da filmografia dele serem decisivamente ligados a De Palma e Hitchcock, respectivamente. Diz muito sobre o cinema.

O Assassino da Furadeira (Abel Ferrara, 1979)

Duma convergência entre Taxi Driver, Repulsion, O Inquilino, Sex Pistols e uma poça de vômito ensangüentado, nasceu O Assassino da Furadeira, primeira obra[prima] de Ferrara e facilmente um dos filmes mais retardados, toscos, vagabundos e injustiçados do mundo. É uma coisa extremamente bizarra, doentia, caótica, mas tão genial quanto incompreendida. Parte mais ou menos do mesmo ponto que o filme de Scorsese, inclusive sendo pontuado com diversas referências e subversões a elementos/frases/cenas populares dele, mas tem diferenças determinantes.

Aliás, praticamente tudo, já que, enquanto Taxi Driver apresenta uma visão burguesa e distante da marginalidade metropolitana, refletida sempre através dos olhos de Travis, uma peça descolada da engrenagem social que acaba poupando o espectador do contato direto, The Driller Killer tem como protagonista alguém que faz parte da escória – um artista plástico falido que participa intensamente da porra-louquice do submundo de drogas, putarias, shows de rock/punk e tudo mais que dá vida ao universo esquizofrênico desejado por Ferrara.

O filme aborda a entrada do homem em uma corrida transloucada em direção ao inferno, um processo gradativo de estado de loucura proporcionado pelo sufoco das dificuldades encontradas na sociedade moderna – falta de grana e de autocontrole, principalmente, o que acarreta todo o resto, no fim - que culmina no surto absoluto exteriorizado através de uma série de assassinatos cometidos com uma furadeira. Nada de justiça com as próprias mãos, porque ninguém é herói. O negócio aqui é piração completa, gosto por sangue em estado de demência.

E é um filme todo errado, amador, trabalho de iniciante mesmo – mas que tem muito a dizer e provocar, e acaba somente ganhando com o charme de toda a tosquidade provocada pela falta de estrutura narrativa, de grana – foi filmado ao custo de 20 mil dólares -, de sanidade. Não existe coerência, ritmo ou qualquer desejo de facilitar a fluência da estória – que nem existe também, na realidade -, algo que pode ser facilmente constatado devido ao fato de quase metade do filme ser composto de clipes da banda punk – em bares, apartamento de ensaio, o que for - dos vizinhos do protagonista – que, aliás, é interpretado pelo próprio Ferrara, um doente em potencial.

Mas nitidamente tudo não passa de uma brincadeira sem qualquer pretensão a não ser a provocação, psicológica e física, que ainda tem uns lances geniais de inversão de expectativa – ou de simbologias mesmo -, como numa das últimas cenas, em que uma musiquinha de ninar toca e, junto de sua expressão levemente feliz, dá a entender que o protagonista está sonhando algo bonito, mas na realidade imagina-se banhando no sangue de uma de suas vítimas – isso poucos momentos antes daquele final ainda mais genial, com a tela toda em vermelho e a garota deitando na cama com o namorado depois do banho, sem saber que ele está morto, e chamando ele carinhosamente prum amasso.

E o cara, um ferrenho incinerador do catolicismo, ainda aproveita pra brincar com certos elementos da igreja através de pequenas referências que, em muitos momentos, dão um tom cômico impagável ao filme – a primeira cena se passa numa igreja, com um mendigo tentando pegar a mão dele; o primeiro contato com uma furadeira acaba resultando em ele fazendo furos numa porta evocando o sinal-da-cruz, a pedido involuntário de sua amiga; numa das mortes ele ‘crucifica’ um mendigo numa parede furando suas mãos, clara alusão a Cristo; etc. – mas sem a densidade que traria em seus filmes seguintes.

O engraçado, aliás, é que, mesmo sendo um 'fracasso' até atualmente – o diretor já não é muito bem visto normalmente pelo público em geral, e esse é visto como seu filme mais podre -, O Assassino da Furadeira ainda serviu de base pra muitos slashers dos anos 80’, principalmente uma das maiores merdas que já filmaram, que se eu não me engano se chama Massacre, seco assim – é um filme que tem como protagonista um maníaco que foge do hospício e mata mulheres com... uma furadeira, mas a coisa é tão ruim que chega a dar pena de quem fez.

E ainda tem o lance do coelho morto, vindo de Repulsa ao Sexo, que o Ferrara retalha e depois fica mandando beijo pro olho dele, e das mortes geniais, principalmente dos mendigos, perfurados e estraçalhados sem dó – e depois de meter a broca na cabeça de um, inclusive, o maluco ainda dá beijo na testa também, haha -, e das delirantes variações visuais, como o uso das lentes vermelhas, o letreiro ‘this film should be played LOUD’ abrindo o filme, os enquadramentos esquizos e a montagem caótica, a utilização da cenografia decadente – mais uma referência a Polanski – quase como personagem, cheia de ambientes sujos, podres, velhos, cheirando a merda - dá até pra sentir do lado de cá -, com tudo isso aliado aos efeitos sonoros deturpados e alucinatórios e deixando o filme sempre com um tom de freneticidade absurdo.

Enfim. Sensacional. Um catalisador visceral perfeito das sensações que o movimento punk despertou e da influência disso na sociedade e dela no individuo, praticamente mutante, num filme completamente fora de qualquer padrão.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Laura (Otto Preminger, 1944)

Fantástica a maneira como Preminger desenvolve seu tratado sobre a obsessão, oportunamente acobertado por uma trama típica de crime noir. E o mais curioso, muito além da inventividade de se repartir o tema sobre três personagens diferentes, armando, assim, um quadro interminável de possibilidades e gradações para estender a brincadeira, partindo da necrofilia ao ciúme em questão de um corte, fica por conta do tom completamente distante de qualquer prejulgamento que conduz desde o princípio a pequena odisséia daqueles três homens – cuja inter-relação jamais deixa de soar misteriosa. Aliás, é muito estranha a forma de Laura, que até a primeira reviravolta impressiona pelo distanciamento que o diretor mantém da ação e, principalmente, pela cadência incomum. É de uma frieza e lentidão mais do que atípicas, até para um filme policial – inclusive para um Preminger, que em Anjo ou Demônio?, pra ficar em uma referência próxima, constrói um melodrama de conteúdo relativamente semelhante e esteticamente – e também no ritmo – muito diferente. Mas tudo não passa de um jogo; brincadeira de identidade. E nem preciso dizer o quanto é sensacional vermos uma personagem ser montada em fragmentos e ter pulso completo antes mesmo de cruzar a tela pela primeira vez. Aliás, quando Laura finalmente adentra a misteriosa cena do crime, numa seqüência que beira o pesadelo operístico, a ‘surpresa’ consegue transmitir uma sensação de perplexidade totalmente inversa. Parece que ela esteve ali o tempo todo – herança, talvez, daquele quadro maldito que ajuda o protagonista a exteriorizar sua crescente obsessão, ou talvez da própria mística em torno da personagem, que faz parte de cada linha de diálogo recitada nas cenas anteriores.

O resultado de tudo isso é o responsável pelo aprisionamento de Laura a um universo distante de todo o cinema realizado até então. Mas é explicável. Um filme romântico que jamais vê o amor de forma romântica, nem mesmo pra tentar fundamentar um sentido oposto, não se permite encaixar em nada. Ao contrário da abordagem de Preminger, fria como uma noite de inverno suíço, Laura é a subversão de todo e qualquer sentimento. Um filme feito do avesso.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Onde os Fracos Não Têm Vez (Joen & Ethan Coen, 2007)

Com certo atraso, mas foi. E é o filme da década, além de um dos trabalhos mais bem acabados que eu já vi. É perfeito. Montagem estupenda; fotografia em tons áridos, mas abusando dos contrastes – e com utilização fenomenal das sombras da noite como mecanismo de suspense -; cadência impecável, praticamente musicada, lenta, mas sempre fluente [em alguns momentos chega a lembrar Hawks, tamanha é a precisão – em especial a dobradinha Rio Bravo/El Dorado]; manipulação de tensão sem igual, com a música ou com a não utilização dela – o silêncio nunca foi tão inquietante. Genial o lance dos hotéis, representantes da transição social tanto quanto o filme fundamenta a ciclicidade da corrosão moral [que tem na cena do acidente um microcosmo indestrutível], servindo ainda de palco para alguns das seqüências mais extraordinárias do cinema contemporâneo. E é curioso como o grande motivo para a existência do filme [a perseguição do assassino metódico e doentio ao homem que pegou a maleta de dinheiro] vai enxutando conforme o tempo passa, transformando-se em peça quase sem importância no terceiro ato – um exemplo brilhante de como se concluir um filme destruindo o clímax, ao invés de intensificá-lo. E os ‘brôs’ ainda pontuam a jornada com aqueles toques bem pessoais de humor deslocado de seu próprio universo e, ao mesmo tempo, sendo base de tudo. Chega ao nível de sarcasmo doloroso, implícito, porém indissolúvel das imagens. Sem contar que possui o vilão mais maldoso do cinema, o mais onipresente.

E não, não é o Barden. É o dinheiro.

Obra-prima.

TOP dos Coen
01. Onde os Fracos Não Têm Vez (No Country For Old Man, 2007)
02. Bartos Fink (Barton Fink, 1991)
03. O Homem Que Não Estava Lá (The Man Who Wasn't There, 2001)
04. O Grande Lebowski (The Big Lebowski, 1997)
05. Gosto de Sangue (Blood Simple, 1984)
06. Ajuste Final (Miller's Crossing, 1990)
07. Fargo (Fargo, 1994)
08. Arizona Nunca Mais (Raising Arizona, 1987)
09. E Aí, Meu Irmão, Cadê Você? (O Brother, Where Art You?, 2000)
10. Na Roda da Fortuna (The Hudsucker Proxy, 1994)
11. O Amor Custa Caro (Intolerable Cruelty, 2003)
12. Matadores de Velinhas (The Ladykillers, 2004)

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Thriller: A Cruel Picture (Bo Arne Vibenious, 1974)

Exploitation que serviu de clara inspiração para que Tarantino surtasse completamente em sua grande obra-prima, Kill Bill. E tem muita coisa retomada pelo mestre do pop-cinema neste filme de vingança sueco dirigido por um ex-assistente de Ingmar Bergman – que grande união de estilos, hein. Desde a estrutura narrativa, praticamente idêntica, até a própria protagonista, que serviu de base para a caracterização da personagem de Daryl Hannah. Mas Thriller fica bem distante de possuir o charme e a empolgação de um Kill Bill, embora contenha momentos verdadeiramente excepcionais.

Na realidade, pode-se dizer que surpreende o fato de ser tão bem acabado, pouco extravagante – com exceção para as cenas de sexo explícito que, embora possam ser consideradas importantes para acentuar a sede de vingança da personagem principal [o que eu não concordo], são muito mal aproveitadas – e com um ritmo beeeeeem lento para um filme b de ação. Aliás, lento demais. Mesmo que saiba montar inteligentemente tanto os três atos da estória quanto os momentos em que duas ou mais espécies de ação concentram-se juntas em determinado ponto da narrativa, Bo Arne Vibenious deixa seu filme, em algumas partes, beirando o tedioso.

Mas o que realmente decepciona, embora seja compensado com aquela seqüência final absolutamente genial em que a moça finalmente confronta seu maior inimigo, o homem que lhe viciou em heroína e obriga-a a ser prostituta para alimentar a dependência, é que a vingança, depois de uma ótima primeira cena de assassinato, se torna repetitiva e chata demais por termos que agüentar o diretor feliz da vida ao descobrir seu novo brinquedo, uma câmera da NASA que capta movimentos em velocidade inédita – e realmente impressionante -, repetindo o modelo da ação umas dez vezes até a gente não agüentar mais.

Independente disso, muito cruel e intrigante, na mesma medida - embora a idéia seja um pouco melhor do que a execução.

Curva do Destino (Edgar G. Ulmer, 1945)

A incerteza inenarrável transmitida junto ao final infinito de Curva do Destino não encontra parâmetros em qualquer outro do cinema. Tanto quanto o filme. Produção barata recheada de falhas técnicas, péssima captação de som fotografia acinzentada e toda manchada pela insinuante fumaça [de cigarro ou das ruas] típica de becos de Nova York ou Los Angeles, essa obra-prima do film noir consegue atingir, tanto em forma quanto em conteúdo, um ponto de convergência tão próprio que parece ser brincadeira.

A estória é muito simples, tanto que fica impossível ser contada sem adiantar pontos importantes – que, na realidade, pouco existem. Numa espécie de prelúdio à obra máxima de Michelangelo Antonioni, Profissão: Repórter, Detour acompanha um homem angustiado que, em um balcão de bar, passa a recordar os motivos que o fizeram chegar até ali – dividindo-os com o espectador sob forma de flashback, pelo qual o filme todo é narrado [e lá se vai minha birra com os flashbacks, rumo ao espaço].

Conta como conheceu um homem que lhe concede carona até Los Angeles. Conta como este morreu misteriosa e subitamente, e também sobre o medo de ser incriminado por assassinato, que fez com que tomasse a identidade do falecido e continuasse o rumo do cara como se nada tivesse acontecido. Conta com conheceu uma mulher que o desmascarou, posteriormente atirando-o em um jogo de interesses duvidosos e brincadeiras com o destino – aquela coisa bem típica do noir mesmo. Conta como, sem querer, assassinou-a, finalmente cometendo um crime.

Pronto. Contei o filme [e eu avisei que coisas seriam reveladas, então não chorem, hein]. O que resta, no final, é o homem sofrido sabendo que, a qualquer momento, sua vida poderá ter um fim, já que deixou mais de mil maneiras possíveis de a polícia chegar até ele e incriminá-lo pelo acidente que resultou na morte da moça – registrado em uma cena absolutamente genial. E a sensação de incompletude é transmitida de forma sensacional, sarcástica, já que o filme termina com pouco mais de uma hora e de forma abrupta, totalmente inesperada.

Brincar com o cinema é a melhor coisa do mundo, pessoal. Ser enganado por quem sabe, também.

domingo, 4 de maio de 2008

A Noite dos Mortos-Vivos (George Romero, 1968)

Tem gente que fica tentando anexar duzentas metáforas de crítica social e análise da natureza humana às imagens de A Noite dos Mortos Vivos [já vi alguns dizendo que o filme trata sobre a influência da mídia nos homens simplesmente porque os personagens, trancados em uma casa de campo cercada de mortos-vivos, param em frente a uma televisão pra acompanharem o noticiário e se informarem de como está a situação em outros lugares do país – ah, porra, vão procurar pêlo em peixe em Matrix], mas tudo não passa de uma tremenda bobagem – que não diminui em nada o filme, diga-se. O primeiro filme da série de Romero sobre zumbis é diversão e só, embora tenha muito mais significado se encarado meramente como uma experiência de curiosidade sobre o início de toda a peregrinação dos mortos-vivos no cinema do que realmente como um filme excepcional. Em termos de trama a coisa é bem simples, até banal pros padrões de cinema de hoje – inclusive se levado em conta orçamento e etc, que era baixíssimo pra esse filme, mas foi mais baixo ainda pro Raimi fazer The Evil Dead e saiu uma coisa completamente surtada e surpreendente. Mas é realmente genial o fato de um cara pegar 100 mil dólares, seus amigos e uma câmera e partir prum sítio durante um final de semana e fazer um filme transgressor, fundador de conceitos. Sem contar que tem uma grande noção de cinema por trás de tudo, com um diretor que sabe manipular muito bem o interesse das cenas através de enquadramentos de proporções surrealistas e que dão um toque macabro a mais à situação, junto dos constantes contrastes que a pouca iluminação provoca. Tem também um final incrível, tanto na resolução daquele dia em que decorre o filme – os zumbis comendo carne humana são imagens inesquecíveis – quanto no epílogo e na cena derradeira, de um pessimismo todo torto. Vale a pena ver.

Tenebre (Dario Argento, 1982)

O mais metalingüístico cinema. E não são poucos os fatores que transformam esta obra-prima de Dario Argento, provavelmente o grande filme da carreira do italiano, num filme completamente debruçado sobre esta técnica que, de modo ainda tímido e insuficiente, aparecia em alguns de seus filmes anteriores, como Prelúdio Para Matar. A primeira cena, aliás, já diz muito a respeito do tom, com o assassino de luva preta lendo trechos do livro que posteriormente será inspiração para as mortes que sucedem a chegada do escritor do livro Tenebrae à capital da Itália, onde participará de uma série de entrevistas para divulgar seu trabalho.

A antecipação da trama já demonstra uma clara referência metalingüística, de fato, mas os exemplos jorram de forma tão intensa quanto o sangue que percorre cada fotograma demoníaco deste retorno de Argento aos giallos, gênero que transformou o novato cineasta, nos anos 70, em um mito do cinema de suspense/horror italiano. A câmera subjetiva, em especial, ensaiada em alguns planos de Prelúdio Para Matar – sempre ele como referência porque é o único pré-Tenebre que eu vi – mas sem realmente fazer parte de um contexto, mais servindo como propulsora de tensão em algumas seqüências, ganha significados imprescindíveis dentro da trama.

Depois de dois assassinatos e uma meia-hora de filme, o recurso, mesmo sem ser utilizado com abundância, torna-se tão indissolúvel da decupagem que passa a confundir a cada plano a percepção do espectador, criando uma dúvida insolucionável em relação à origem da imagem [assassino?, plano de visão extra-diegética?, protagonista?, cão chupando manga no canto do cenário?, quem, pelamordedeus?]. E sempre que visivelmente parte do ângulo de visão do responsável pelas mortes, que tem sua identidade oculta – e confundida – o tempo todo, a utilização do recurso é excepcional – nivelada com De Palma, pra se ter uma noção.

Mas a metalinguagem não pára por aí. Quando as coisas começam a apertar para os heróis-argentianos, assim como em Hitchcock, De Palma, etc, normalmente é o próprio que inicia uma investigação por conta própria pra tentar tirar o seu da reta. Mas o escritor de Tenebre, enquanto [SPOILER] ainda faz parte do grupo de expectadores dos assassinatos [FIM DO SPOILER-NÃO-SPOILER], permanece o tempo todo de fora, ao lado de quem vê e, inteligentemente, devido a um jogo de noção de trama absoluto de Argento, investiga, antes mesmo de os personagens começarem a fazer o mesmo – as pistas sempre chegam antes a nós do que ao moleque que pira em ser investigador e do próprio investigador, ninguém mais que Giuliano Gemma.

Mesmo assim, [SPOILER GIGANTESCO] a grande e genial sacada metalingüística de Argento é transformar o próprio protagonista em roteirista da trama no terceiro ato [o que, curiosamente, não deixa de ser uma obsessão bem expressiva de alguém que escreve estórias policiais para a literatura], passando-o de espectador a protagonista, a assassino, quando dá início a uma série inexplicável de renovações de enredo e brincando como um autista [Brian De Palma mode totalmente ligado, à última potência] com seu próprio filme – a resolução do mistério é concluída meia-hora antes de tudo efetivamente terminar, e não há possibilidades de se adiantar a loucura que é acompanhar os vai-e-vens que sucedem antes de os créditos finais começarem a baixar na tela, aos sons rasgantes dos gritos de uma das personagens embalados pela trilha descaralhal de Goblin.

Aliás, é até fácil compreender o porquê de o Argento ter retornado, depois de seis anos, ao gênero que havia lhe transformado em ícone, depois de iniciar sua empreitada pelo suspense sobrenatural com Suspíria. Prelúdio Para Matar era o mais próximo que havia chegado de construir uma obra definitiva para o estilo, mas a discrepância qualitativa – algumas seqüências são das coisas mais fantásticas já filmadas, outras um tremendo nhénhénhé – e a resolução a la Sexta-Feira 13 deixavam o resultado final, embora fantástico, insuficiente. Tenebre viria pra lacrar os erros em uma caixa de metal blindado e atirá-los no mais profundo dos mares.

E, mesmo que a trilha-sonora, embora genial, não seja tão impactante/importante quanto aquela coisa estupradora de Prelúdio Para Matar, as cenas de morte em Tenebre alcançam um grau de grafismo e impacto muito maior – talvez por manterem um crescendo muito bem costurado e estourarem de vez ao nível da doenticidade na meia-hora final, quando todos os personagens aparecem em determinado local ao mesmo tempo somente para serem vítimas de uma brincadeira de resta-um das mais alucinadas. Aliás, não tem pra ninguém: a morte da americana que perde o braço com uma machadada é a maior do cinema, por aquele lance genial de ela levantar com uma coreografia incrível e manchar a parede de maneira única com um jorro incontrolável de sangue.

E nem tem o que dizer daquele plano-seqüência irrealizável que o Argento utiliza como prelúdio da morte das lésbicas, saindo com a câmera de uma janela, dando a volta no sentido vertical em toda a casa, atravessando o telhado, descendo pelo outro lado e parando em outra janela, que começaria a ser rebentada pelo assassino. E ainda tem a brincadeira leonística genial do lance das memórias atiradas de forma desconexa dentro da trama, mas deixando o espectador ter ciência de que são memórias mesmo, para explicar certo fato do final. E o último assassinato, um encerramento de filme perfeito, sangrento e totalmente pessimista, deixando viva a única personagem que não fez porra nenhuma durante todo o filme e que, por isso, merecia ter morrido antes de todo mundo. Aqueles gritos ecoam na sala por muito tempo.

Não é por qualquer coisa que alguns consideram este o mais De Palma dos Argentos. E nem preciso ver mais nada pra afirmar que este é seu filme definitivo. Foda-se o resto. E foda-se a coerência, já que este texto foi escrito em menos de meia hora e provavelmente deve estar uma confusão só. Entendam o que quiserem. Não tenho mais tempo a perder.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Eraserhead (David Lynch, 1977)

Nem vou chamar de ‘decepcionante’, porque na realidade não esperava muito mesmo – não simplesmente por ser um trabalho inicial, porque isso não justifica de forma alguma qualquer filme de menor qualidade. Mas Eraserhead não deixa de ser apenas um rabisco de ideologias cinematográficas, de conceitos, em grande parte do tempo. Um bom exemplo de construção atmosférica, através da sensação sufocante daquele ar pós-industrial que parece ter tomado conta de cada pedaço do mundo, mas completamente desinteressante ao jogar com isso, fazendo valer por um ou dois momentos que, curiosamente, funcionam muito mais como elementos de comicidade do que fundamentais pra seilaqualera a intenção de Lynch em submergir o personagem em uma espécie de pesadelo-contínuo e indissolúvel que parece ter tomado conta de sua realidade. A primeira aparição do bebê é genial, principalmente pelo choque – puta coisa cômica mesmo – daquela criatura de feição absurda e alienígena sendo tratada com carinho pela mãe, mas nem mesmo a seqüência da morte, de uma tosquidão incrível, aproveitaria bem a condição da criança novamente. Outros personagens atirados pelo Lynch na jornada, como a ‘cantora-com-bochecha-a-la-Fofão’, entram e saem de quadro sem valer porra nenhuma – e só não são piores do que o protagonista mesmo, e a má notícia é que é preciso agüentá-lo, com suas caras e bocas de quem está tomando ferro na bunda, o tempo todo. Vale como curiosidade pra quem curte o Lynch, mas fica muito, muito distante das melhores coisas do cara – em especial a dobradinha Cidade/Império dos Sonhos e sua obra-prima, Veludo Azul.

Paixões Que Alucinam (Samuel Fuller, 1963)

Fuller mais implícito do que em O Beijo Amargo, um grande abuso de manipulação cinematográfica e filme de extremos, mas nem por isso menos interessante. A grande diferença entre os dois talvez seja o fato de que, embora mantenha seu estilo esfericamente amoral em ambos, este aqui depende muito mais do conteúdo do que da forma – que é bem pouco inspirada, aliás, construída através de uma narrativa em esquetes e com pouco apelo visual, ao contrário do outro. Mas é um catalisador sensacional de toda a estrutura social e histórica norte-americana, além de um interessantíssimo jogo de verdades e mentiras, que embora tenha como principal elemento o próprio truque com a sanidade do jornalista, traz como exemplo máximo a seqüência em que percebemos que a birra do negro com a própria raça nada mais é que um reflexo de sua condição de ‘espelho’ frente a um trauma social – mais Fuller impossível. Confesso que acharia muito interessante se tudo terminasse naquela seqüência efervescente de delírio torrencial, mas não se pode negar que o desfecho seja fundamentalmente orgânico frente à proposta do filme.

Sob o Domínio do Medo (Sam Peckinpah, 1971)

Ou “A Bomba-Relógio”, de Sam Peckinpah - que também poderia ser conhecido como "There Will Be Blood".

Acredito que ninguém mais no cinema tenha elevado a tamanho grau de intensidade aquela teoria de Hitchcock sobre construção de suspense, do casal jantando e a bomba armada debaixo da mesa, pronta para explodir a qualquer momento – e o espectador tendo ciência disso. Não simplesmente por representar uma espécie de microcosmo de toda a problemática social derivada da hostilidade humana, cada vez mais potencializada pela impaciência e a incompreensão, mas por desde o início a abordagem de Peckinpah, através da histrionicidade dos enquadramentos e da montagem com picos de surtagem altíssimos, transmitir uma sensação de que a televisão pode finalmente explodir em mil fragmentos e perfurar nossa carne.

Straw Dogs segue a mesma linha da obra-prima máxima de Peckinpah, o maior western – e, se bobear, filme – de todos os tempos, The Wild Bunch. A estrutura da ação, aliás, demonstra muito bem que não apenas seu cinema permanecia aliado ao senso de construção narrativa que desenvolvera alguns anos antes. Sua ideologia transgressora havia engrossado - estava ainda mais afiada, impiedosa. E é aqui o ponto em que o diretor resolve chutar as estribeiras e arremessar sua fúria aos quatro cantos do mundo – tanto que, logo em sua seqüência inicial, as crianças, que antes ateavam fogo em um escorpião, agora brincam ao redor de túmulos em um cemitério, numa clara demonstração do poder de subversão da imagem.

A cena diz muito sobre o filme – e sobre a continuidade de discurso que representa. Se Meu Ódio Será Tua Herança registrava o fato, Straw Dogs é uma visão pessimista – e não poderia ser diferente - das conseqüências. A sociedade moderna, que no primeiro encontrava-se em um período de [trans]formação, passa por um momento delicado, à beira da explosão. Não existem mais limites para a vulgaridade, nem mesmo motivações para contorná-la. Homens passam os dias bebendo, sem trabalhar. Mulheres expõem seus peitos e coxas através de costuras abusadas, de pequenos recortes têxteis que ocupam o espaço antes reservado aos longos e trabalhados vestidos. O instinto animalesco está estampado face a face.

O matemático David Sumner, interpretado por Dustin Hoffman, uma peça ainda solta da engrenagem peckinpahkiana, dá início ao filme quando atirado dentro deste universo fora de controle. Mas no cinema do ‘Tio Sam’ não existem heróis. Vivendo alienado pelo egoísmo de não querer ver, o homem acaba se fechando em um universo próprio, do qual exclui até mesmo sua esposa, que em muitos momentos parece implorar pela companhia do marido – sem jamais ter seus esforços retribuídos. O distanciamento registrado nesta relação conjugal, aliás, funciona como um dos principais meios de se chegar onde finalmente o filme pretende: qual o limite desta situação catártica?

Antes de a resposta, uma pequena grande mensagem de Peckinpah a respeito do próprio instinto animalesco – e natural – humano, finalmente chegar, o diretor aproveita para construir um dos filmes de suspense mais perturbadores de que se tem notícia, partindo do insinuante para o gráfico em questão de segundos. Aliás, Straw Dogs é uma aula de montagem justamente quando pretende transformar sentimentos e significados, como em sua seqüência mais tensa e sufocante, na qual, enquanto David efetua pela primeira vez uma ação plenamente machista, a caça, sua mulher é estuprada em seu próprio sofá e, pior, passa a gostar da coisa durante o ato – e logo depois paga por isso, sendo estuprada novamente depois de gozar, por um outro homem.

A cena em questão é taxada por muitos de repulsiva, machista, doentia, mas nada poderia construir um diálogo tão forte com o discurso principal do filme do que a crueza com a qual a ação é fotografada. É de deixar os adoradores de certo filminho de Gaspar Noé com gosto de sangue na boca, implorando pelo fim. E a brincadeira de Peckinpah com a imagem chega ao extremo limite na cena da quermesse, quando o estupro é retomado através de flashbacks intercalados com a ação vigente e, junto dela, passa a transmitir novas – e antes inimagináveis – sensações. E é a partir deste ponto que as coisas começam a tomar o rumo desenhado através de cada frame antes projetado, que desemboca em um final absolutamente genial – e inenarrável.

E a bomba-relógio explode, resultado de um processo de equívocos coletivos.

quarta-feira, 30 de abril de 2008

TOP 10 - FILM NOIR

Meu atual TOP 10 do gênero mais gostoso do cinema.
01. No Silêncio da Noite (In a Lonely Place; Nicholas Ray, 1950)
02. A Morte Num Beijo (Kiss Me Deadly; Robert Aldrich, 1956)
03. Império do Crime (The Big Combo; Joseph H. Lewis, 1955)
04. A Marca da Maldade (Touch of Evil; Orson Welles, 1958)
05. Almas Perversas (Scarlet Street; Fritz Lang, 1945)
06. À Beira do Abismo (The Big Sleep; Howard Hawks, 1946)
07. Curva do Destino (Detour; Edgar G. Ulmer, 1945)
08. Pacto de Sangue (Double Indemnity; Billy Wilder, 1944)
09. Fuga do Passado (Out of the Past; Jacques Tourneur, 1947)
10. O Mensageiro do Diabo (The Night of the Hunter; Charles Laughton, 1955)

Império do Crime (Joseph H. Lewis, 1955)

O menos romântico dos noirs. Império do Crime pode ser encaixado tranqüilamente na interminável lista de obras-primas do maior gênero do cinema, mas talvez seja o filme que mais divirja do classicismo típico do submundo de corrupção moral que substancia o universo do filme de crime norte-americano. Ritmo lento, direção carregadíssima, narrativa cíclica e sem quaisquer momentos de clímax – com exceção do final, que nem mesmo se esforça para ganhar notoriedade em meio ao conjunto de ações que estruturam a trama. Todos elementos desprezados pela cartilha de características básicas do noir, e que dão o tom surpreendentemente atípico deste filme de Joseph H. Lewis.

Mas, se The Big Combo, teoricamente, pode ser considerado um anti-noir, na prática se revela um dos momentos mais brilhantes de todo o movimento. É um filme genial. Intrincado, sem qualquer esforço de fluidez entre as seqüências, recheado de personagens fechados em seus próprios interesses e estruturado sobre uma subversiva e inteligentíssima troca de identidades: se o protagonista, a principio, é o policial obcecado por desmascarar o atual homem mais poderoso do império criminoso de uma metrópole, no fim o verdadeiro cerne de toda a estória acaba transportado justamente para o vilão, interpretado com uma frieza impressionante por Richard Conte.

O filme pode ter sua temática rasgada em duas metades: é um grande estudo sobre o poder, personificado no personagem de Conte [‘first is first, second is nobody’, é o seu bordão], mas também uma intersecção entre a inveja e o amor como formas de justificar a dedicação obsessiva do policial ao seu trabalho – num caso que custou à corporação mais de 18 mil dólares e não trouxe sequer um indício de possíveis resultados, somente a aproximação dele de seu objeto de desejo. E é no balanço entre as duas faces da moeda, policial e gângster, que gira todo o universo de The Big Combo. Uma disputa de personalidades conduzida com um distanciamento intrigante, e que gera alguns dos mais preciosos momentos do cinema noir.

Aliás, é impressionante como o filme consegue se manter na defensiva durante o tempo todo e, mesmo assim, ser palco de pelo menos umas dez seqüências marcantes, daquelas para serem lembradas sempre, enquanto o cinema ainda estiver em atividade. Desde a tortura aplicada pelo big boss ao policial, em uma das primeiras seqüências de confronto físico entre ambos, até o momento em que o canalha apronta-se para assassinar seu ex-colega – e atual algoz – e decide dar a ele a chance de “não ouvir os disparos”, Império do Crime é arquitetado com genialidade plano sobre plano - mesmo que Lewis continue mantendo a unidade impecável que o transforma em um dos grandes exemplos de cadência rítmica do cinema.

E o mais curioso, ainda por cima, é que o diretor tem a audácia de transformar seu filme em um produto de anti-diversão, bem diferente dos noirs do mesmo período, que normalmente apresentavam tramas policiais pensadas com o único propósito de mexer com as emoções – e os nervos – de quem tanto curtia o gênero. É um trabalho mal resolvido, sem grandes surpresas, lento, exaustivo, pesado e tão obscuro quanto os cenários embebidos por uma negritude indescritível pelos quais passeiam os personagens, mas que ainda assim – ou justamente por isso – funciona melhor do que quase todos os filmes do estilo. É uma experiência atípica, desgastante, porém muito intrigante.

Intrigante, por sinal, é também o fato de eu nem ter comentado o que provavelmente seja o maior triunfo de Império do Crime. É covardia comparar qualquer outro trabalho de fotografia já realizado no cinema com essa overdose de escuridão capturada pelas lentes vampirescas de John Alton. Mais um pouco, e o filme seria apenas uma imagem escura projetada na tela tendo sua estaticidade rompida por diálogos fantasmagóricos surgidos hora ou outra. Não se pode dizer nem mesmo que existe o tão famoso contraste acentuado dos noirs, é preto-no-preto e os atores atirados no meio da penumbra em pelo menos 70% das cenas. Nos outros 30%, por sua vez, parece mais que a celulóide tragou uns dois maços de cigarro do mais vagabundo e baforou em direção aos seus olhos.

Contando ainda com um desfecho cenograficamente inspirado na clássica seqüência final de Casablanca, esta pequena e atípica aventura sobre o sindicato do crime norte-americano merece lugar de destaque entre as grandes obras do cinema de Hollywood. É bem diferente de tudo o que foi feito até então, apesar de levemente inspirado no clássico Os Corruptos, de Fritz Lang - principalmente na busca pelo maior realismo na abordagem da corporação policial, inventividade do alemão. Mas The Big Combo é muito mais audacioso e esquisito do que qualquer outro filme noir, tratando de um gênero plenamente comercial da forma mais anticomercial possível. E talvez por isso mesmo seja tão obra-prima.

terça-feira, 29 de abril de 2008

Quanto Mais Quente Melhor (Billy Wilder, 1959)

Revi Some Like It Hot hoje, em um momento de ócio acadêmico – novidade – dentro do busão, esperando chegar a hora de voltar pra casa - tivemos a manhã inteira livre, já que choveu e o dia era específico para filmarmos as externas – uma cena de atropelamento – do nosso pequeno curta-metragem. A sorte é que eu tinha o filme comigo, na bolsa da minha namorada, pois iria emprestá-lo ao meu amigo caralhíssimo, Luis.

E como é bom rever um Wilder inspirado como esse. Talvez aqui esteja uma das grandes provas do por que de o Wilder possuir até hoje aquele estigma maldito de diretor-de-roteiros, que não era exigente com o visual e etc – uma bobagem desmedida, como já disse alguns meses atrás tratando sobre Farrapo Humano, outro Wilder excepcional. Um texto enxuto, preciso, classudo, ágil, sarcástico, cheio de analogias engraçadíssimas, tiradas e trocadilhos bem ao estilo dele e tudo mais. A sofisticação de Quanto Mais Quente Melhor só pode ser medida através da escala Richter. É uma coisa inenarrável.

E mesmo que saibamos de cor cada uma das piadas – não simplesmente por eu ter visto pelo menos umas cinco vezes, mas porque foram repetidas demais por todo o mundo nos anos seguintes – não tem como não gargalhar feito uma criança, ou pelo menos esboçar uma reação de encantamento com a delícia que é esse filme. E também não dá pra deixar de citar aquele canalha do Tony Curtis, fácil fácil um dos atores mais geniais que já pisaram em solo hollywoodiano.

Aliás, não saberia estimar uma única atuação preferida do cara. Escolheria pelo menos três. Essa, que na realidade é a menos exigente, mas a mais deliciosa de se acompanhar, pela troca de sexo de seqüência em seqüência e as bobagens que sucedem disso, certamente é uma delas. As outras duas acho que seriam as de O Homem Que Odiava as Mulheres – um filme muuuuito pretensioso, que poderia ter dado certo caso não contivesse aquela tentativa de inovação completamente datada do Fleischer na montagem -, no qual só aparece no terceiro ato – é o assassino – mas rouba pra si todos os holofotes, e A Embriaguez do Sucesso, obra-prima de Alexander Mackendrick , no qual trava um duelo perigosíssimo com Burt Lancaster pra ver quem é a grande figura do filme.

E nem é de Curtis que Wilder depende, simplesmente, em Quanto Mais Quente Melhor. Ainda tem aquele fodão do Jack Lemmon, absolutamente genial com suas caras e bocas absurdas, e Marilyn Monroe, que sempre dispensará comentários. E isso que eu nem citei o diálogo final, tipicamente wilderiano - em especial a última frase, uma das mais inesquecíveis do cinema. Coisa de mestre mesmo.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Trágica Obsessão (Brian De Palma, 1976)

Brian De Palma é um cineasta de excessos. Quem considera o cinema uma arte de entrelinhas, de sugestividade sobreposta ao escancaro, certamente se transformará de imediato em um detrator de seu estilo, coisa que, por sinal, realmente ocorre – e com grande freqüência. E é até compreensível que filmes como Trágica Obsessão, uma das grandes obras-primas da carreira do maior mestre do cinema contemporâneo, permaneça até hoje na penumbra da memória cinematográfica. Aliás, o curioso de tudo isso é que De Palma, assumidamente, promove com o seu cinema uma espécie de ‘releitura’ do próprio cinema, em especial daquele que é tido como o grande influenciador do diretor e reconhecido como o ‘mestre do suspense’, Alfred Hitchcock, cujo discurso cinematográfico apontava justamente para o caminho contrário ao que trilha: a sugestão. Para Hitchcock, o clima de mistério é o que vale. Para De Palma, não.

Trágica Obsessão, substancialmente, pode ser considerado uma releitura daquela que provavelmente seja a grande obra-prima – junto de Janela Indiscreta, meu preferido – do cinema de Hitchcock, uma estória de amor construída em dois atos distintos e mergulhada em um tom inenarrável de remorso e obsessão – no filme do ‘gordinho’, o personagem de Stewart se recupera do choque que é ver a mulher que ama se suicidar, quando encontra outra que se parece com ela e tenta reviver o romance. O filme em questão é Um Corpo Que Cai, clássico do suspense e que praticamente resume a plotline de Obsession, que com algumas variações retorna ao tema romântico-obsessivo ao apresentar o retorno de um empresário, que, depois de mais de 20 anos, ainda se culpa pela morte da mulher, ao local onde se conheceram, e descobre que por lá encontra-se uma mulher de aparência física incrivelmente semelhante com a de sua falecida esposa.

A diferença entre o cinema de Hitchcock e o cinema de De Palma, portanto, fazem com que Trágica Obsessão eleve o espírito e a pretensão de Hitchcock à enésima potência, num surpreendente surto narrativo que explora com um preciosismo único as variações dramatúrgicas do roteiro original, explorando de forma ainda mais perturbadora as condições emocionais e psicológicas das peças que montam o quebra-cabeça denso e instigante desta dramática trama de obsessão. E é engraçado como, mesmo sendo uma ‘releitura’, Trágica Obsessão termina por ser um filme completamente diferente de Vertigo. De Palma enrola e desenrola cada elemento do filme, inverte as posições dentro da estrutura do roteiro, mexe aqui, ali, entorta lá, e o resultado é simplesmente orgástico, surtante. Os primeiros vinte minutos, sem quaisquer cerimônias, vêm como um baque, um choque em quem aguarda o clímax inicial para lá pelos cinqüenta minutos de filme rodado.

A partir daí, De Palma revela um novo filme. Muito distante do começo eletrizante, tenso. Muito menos tenso, mas ainda mais sufocante, transformando seu suspense em um filme sobre a culpa, o remorso, sobre a torturante sobrevida que o protagonista, preso a um erro do passado, desenvolve a partir do momento em que precisa conviver diariamente com o fato de ter tido a vida das pessoas que mais ama em suas mãos – e jogado-as fora. É um filme sobre a segunda chance; a chance que temos de reverter nossos erros, converter nossos pecados. E poucos trabalhos depalmianos foram tão particulares sob o ponto de vista emocional, dramático – talvez apenas O Pagamento Final se assemelhe em dor e substância a Trágica Obsessão, que, aliás, tem em seu final alguns elementos bem notáveis daquilo que viria a ser desenvolvido mais tarde por De Palma nesta obra-prima do drama policial. É um trabalho bastante profundo, muito distante da artificialidade que normalmente atribuem ao cinema do diretor.

E nada contribuiria mais para esta construção climática do que aquela trilha-sonora arrepiante, inquietante e estupradora de Bernard Herrmann – colaborador de confiança de Hitchcock, aliás. Talvez só a fotografia em tons fantasmagóricos de Vilmos Zsigmond, constantemente em conflito com luzes de velas, feixes de luz em janelas e ambientes em tons outonais, esmaecidos, que deixam uma sensação onírica imprescindível para o tom de romantismo macabro que a estória de amor/obsessão por um passado inemutável requer.

Mas é no terço final que De Palma finalmente comprova o porquê de eu ter chamado-o de cineasta de excessos, brincando feito uma criança autista com sua própria criação ao filmar um desfecho absolutamente insano, doentio, retardado e etc para uma estória tão bonita e profunda. E o pior de tudo é que só assim Obsession seria a obra-prima perfeita e sincera que é. Porque o cinema, acima de tudo, é baseado no poder de manipulação da imagem. E ninguém precisa avisar que este é exatamente o brinquedo preferido de De Palma.

Simplesmente descaralhal, emocionante, sufocante, bizarro, esquizofrênico, genial, um passo à frente do restante da humanidade. O filme mais subestimado do mundo.

domingo, 27 de abril de 2008

Rapidinhas

Ensina-Me a Viver (Harold and Maude; Hal Ashby, 1971)

Hal Ashby consegue balancear inteligentemente as duas características que sentenciam o tom atípico de Harold and Maude, fazendo uma miscelânea entre a melancolia de um Truffaut e a celebração da vida de um Capra. Uma pena, portanto, que o filme carregue incrustado em cada frame uma ideologia pouco favorável ao conjunto, apesar de bem condizente com a proposta do cinema de Ashby, de escolher pequenas peças desreguladas da engrenagem social e brincar em cima de suas condições – não necessariamente querendo se divertir através delas. O filme acaba soando um pequeno e bobo conto moralista, e o engraçado é que Ashby, assim como em Muito Além do Jardim, concentra grande parte de seu esforço justamente na busca das melhores formas para escapar do julgamento fabulístico, algo que neste caso, diferente do outro, acaba sendo em vão. Mas Ensina-me a Viver – tradução medíocre que pode servir de anteaviso - tem seus momentos de brilho, como na primeira cena, quando Harold apronta meticulosamente sua encenação de suicídio, e um ou outro esquete que parta para o mesmo sentido. Ruth Gordon, assim como em O Bebê de Rosemary, está fantástica, infelizmente tendo que permanecer atada à unidimensionalidade da personagem e sua pequena e previsível função. Pode ter funcionado muito bem à época do lançamento, em meio ao fervor da contracultura, mas não envelheceu bem. Ainda que não seja um mau filme.

Aliás, curioso o fato de uma das mulheres que atravessam por um momento o destino do protagonista se chamar Sunshine. Diz muito sobre o filme.

Planeta Terror (Planet Terror; Robert Rodriguez, 2007)

Robert Rodriguez finalmente com consciência do que pode oferecer ao cinema, coisa que não acontecia desde Um Drink no Inferno. E faz um filme delirante, divertido no mais sincero teor da palavra. Desde o início surtado com ponta impagável de Bruce Willis – não tem como não rir do suspense todo que o Rodriguez cria quando o personagem surge e ele construindo um momento praticamente épico à espera da primeira fala, que é uma verdadeira escrotice tanto na forma quanto no tom – até as participações do melhor churrasqueiro do Texas, ou a seqüência extra-tosca com a mulher com a metralhadora no lugar da perna atirando para o chão e saltando sobre um muro, ou então a participação completamente zoada e bizarra do Tarantino e suas bolas em decomposição, o filme é um surto só de manipulação cinematográfica e um exemplo brilhante de como é possível brincar com os próprios clichês – cena do médico prestes a matar a enfermeira, cena do médico prestes a matar a enfermeira – e não transformar o filme em uma sessão de automasturbação. Aliás, o melhor de tudo, além da ambientação perfeita dentro daquela proposta de homenagem aos filmes b, com miolos e vísceras e membros rasgando e explodindo, roteiro salame, personagens mal construídos, problemas técnicos, falhas de projeção, rolos faltando, problemas com o som e etc, é o desenvolvimento de um universo próprio, todo exagerado, artificial, canastríssimo, em que tudo é possível em termos de trama e cinema. Porque Planeta Terror, no fim, é um exemplo perfeito de realizador em completa sincronia com a proposta – viu, seu Ashby? Genial.

sábado, 26 de abril de 2008

Anjo ou Demônio? (Otto Preminger, 1946)

Um filme menor do noir, mas ainda assim muito bom - mesmo que este seja o grau de qualidade mínimo que algo do estilo pode alcançar, pelo menos quando tem um grande diretor por detrás das câmeras. O Preminger consegue desenvolver toda a ambientalização de forma impecável nos primeiros 25 minutos, concentrando o foco na fundamentação das relações inescrupulosas entre os dois personagens centrais e o mundo que os cerca. Isso sem contar no charme inegável que é atribuído aos poucos e repetidos cenários em que transcorre a estória, principalmente o bar, à beira da praia, com um ar soturno, mas ao mesmo tempo romântico – no sentido de evocar o mais puro dos clichês de gênero, o que de forma alguma tem sentido pejorativo.

O mesmo charme, porém, acaba não imperando ininterruptamente no decorrer do filme, que em alguns momentos fica nitidamente monótono, mesmo que estes momentos sejam importantes – mas prolongados em excesso – pra chegar aonde o Preminger finalmente pretendia chegar, no final das contas. E é interessante como, nos quinze minutos finais, ele consegue redirecionar o pressuposto motivo de toda a trama para pelo menos três caminhos diferentes, renovando o filme a cada seqüência, jogando a culpa toda, a princípio, em uma estória de fracasso, mas depois retransformando tudo isso em um conto sustentado por um dos principais temas do noir: a obsessão – e fica clara a influência de filmes como Laura, do próprio Preminger, e Almas Perversas, do Fritz Lang, feitos no ano anterior – mesmo que Laura eu ainda não tenha terminado de ver, por problemas técnicos, mas deu pra notar fácil fácil que o jogo do estúdio foi repetir a dose.

Mas é inegável que Anjo ou Demônio? tenha pelo menos uns dois pares de seqüências sensacionais – a primeira é uma delas, resumindo em prática toda a personalidade do protagonista e dando um tom preciso daquilo que seria desenvolvido mais tarde -, além de um trabalho de câmera e fotografia excepcionais. A direção do Preminger, mesmo insuficiente pra garantir sustentabilidade estável ao filme, impressiona em diversos momentos, mais pelo visual mesmo, com um jogo de câmera inteligentíssimo e muita perspicácia em utilizar as sombras e os macetes estéticos próprios do estilo. E, se o filme termina sem aquele gostinho de obra-prima, ao menos garante uma hora e meia de pura diversão do mais sincero apego às bases do cinema noir. E como vale a pena.

El Dorado (Howard Hawks, 1966)

Aproximadamente cinco anos separam o dia de hoje da primeira vez em que vi El Dorado, num VHS surrado, com chiado, cores esmaecidas e tudo aquilo que transforma o filme em fita em uma experiência inusitada – e divertida – como nenhuma outra. Aliás, pouco recordava do enredo em si, tanto é que nem guardava na memória o fato de que se tratava, superficialmente, de uma releitura completa[mente diferente] de uma das maiores obras-primas do western, o microcosmo do estilo hawskiano por excelência, Onde Começa o Inferno – o que inclusive gerou uma pequena surpresa depois daquele prólogo maldito de quase uma hora de duração.

Mas vamos por partes. Não pretendo me exceder, aprofundar visão ou nada parecido, principalmente por estar começando a escrever este texto em um horário pouco favorável – dez pra meia-noite neste exato momento, sendo que tenho de acordar às 5h20min. Por isso, antes de qualquer coisa, já deixo claro que meu objetivo é ser o mais direto possível, ou seja, procurarei ser curto e grosso, simplesmente, sem fazer rodeios pra tentar esconder qualquer elemento irrevelável do filme – principalmente por ser meio complicado analisar superficialmente um trabalho tão complexo e ainda não utilizar do próprio filme pra fundamentar o discurso.

El Dorado é um dos últimos filmes do maior gênio do cinema norte-americano, Howard Hawks, feito depois de ele ter finalmente compreendido a queda da ideologia pragmática e situada em um universo retrógrado e apolítico que procurava utilizar como regência da grande maioria de seus filmes – principalmente daqueles em que seu código de honra e ética pessoal, transportado quase sempre para o velho oeste, era posto em prova ou simplesmente evocado de certa forma. E é justamente por isso que o filme todo é permeado por uma atmosfera de auto-sátira, auto-homenagem, auto-releitura. Não apenas ao seu próprio universo, mas ao cinema clássico, de uma forma geral.

Alguns especialistas consideram Hatari! como o divisor de águas entre o Hawks clássico e o Hawks moderno. Não discordo. A aventura africana protagonizada pelo seu talismã John Wayne talvez seja o filme em que o diretor mais se desloca, ou realmente de desprende, por definitivo, da sociedade em que vivia. É um filme de universo próprio, fechado em sua teoria de conduta particular, construído exclusivamente para que Hawks desfilasse boa parte de suas principais temáticas e interligando-as em um mesmo ponto de convergência – aliás, Hatari! é outro dos filmes que preciso rever com urgência, já que fazem uns quatro anos que assisti.

O El Dorado, portanto, faz parte da segunda fase, já que foi feito depois (né). E também não discorda. A primeira hora do filme, que talvez seja o que o prólogo mais extenso de toda a história do cinema que eu conheço até o momento, nada mais é do que uma pequena homenagem de Hawks a um gênero que, como ele mesmo já previa anteriormente, junto de Peckinpah (vide Pistoleiros do Entardecer) e alguns outros realizadores, estava terminando de cavar sua própria cova – que levaria junto consigo outras grandes figuras da primeira metade do século XX, como o cinema insinuante de Billy Wilder e os musicais embebidos de alegria da velha Hollywood.

A pequena viagem do personagem de John Wayne, um pistoleiro de encomenda, evoca, separadamente, filmes como Por um Punhado de Dólares, de Sergio Leone – o homem que surge em meio a uma guerra entre duas famílias, mas que, diferentemente do filme do italiano, não se apega a ela antes de encontrar uma necessidade particular -; Parceiros de Morte, de Sam Peckinpah, em especial pelo senso de justiça e de ética que fazem com que o remorso sobreviva como conseqüência da tragédia mesmo em meio a um mundo regido invariavelmente pela frieza individualista – personificada na figura do pai e sua reação à morte do filho; e O Homem Que Matou o Facínora, de John Ford, que tem por base o estudo do mito, explorado na magnífica seqüência do bar; entre outros.

Aliás, o curioso é que Hawks, em El Dorado, joga com o clássico de maneira bastante inusitada, de certa forma até mesmo transgressora, estruturando a primeira parte do filme em elipses carregadas de inexatidão e sem previsão de rumo, em um processo de quase improviso. E pelo menos dois elementos, desta feita não narrativos, mas visuais, demonstram a vigência da modernidade que em breve seria ainda mais explorada em um de seus mais maltratados – pela crítica - e surtados filmes, Rio Lobo: um zoom no rosto do personagem de Wayne, em momento determinante, e um corte descontínuo entre um e outro plano de uma mesma ação, escancarando na tela o processo de montagem do filme – coisa que na época já havia se tornado comum, depois de ser explorado à exaustão pelo seu próprio criador, Jean-Luc Godard, mas que eram incomuns para o cinema classicista do diretor.

Mas é na segunda metade de El Dorado que Hawks finalmente apresenta sua carta-escondida-na-manga, determinando a propulsão de um filme já espetacular ao mais sincero patamar de obra-prima. É o inicio da ‘trama’ principal, quando John Wayne retorna a El Dorado, à briga entre famílias, para auxiliar seu amigo, interpretado com a habitual intensidade de um dos maiores atores de todos os tempos, Robert Mitchum, atualmente xerife desiludido por uma mulher e cada vez mais afogado no alcoolismo – uma das primeiras brincadeiras de Hawks com seu próprio Rio Bravo, construído acerca de um extremo oposto, onde o xerife era auxiliado por um alcoólatra na mesma condição. É a decadência do velho oeste sob forma de uma cidade sem lei, mas o mais interessante é que o principal foco continua sendo Wayne e a desconstrução do mito. Porque John Wayne, no caso, é o velho oeste, e sua condição é determinante para o tom de mortalidade que impregna em cada frame de El Dorado.

E a genialidade de Hawks chega a um nível tão forte, tão ousado, tão imortal, que fica impossível não se impressionar com a versatilidade inquestionável com a qual ele trata do material, que nada mais é do que uma releitura-refilmagem-ueréver de seu principal faroeste – e quando se diz releitura é releitura mesmo, é o próprio Rio Bravo, em seu esqueleto, transposto para a tela, em alguns casos com seqüências idênticas, mas que terminam por ser o extremo oposto das originais em virtude da alternância de um simples elemento. É o mesmo filme, só que em um tom assustadoramente diferente, através do qual Hawks comprova que, com a troca de uma pequena coisinha da cena, pode-se alcançar um resultado final inimaginável, surpreendente – pequenas escolhas e suas conseqüências, hein.

E é assim que Hawks constrói seu conto definitivo sobre a chegada do fim do cinema clássico, em especial do ciclo do faroeste. Porque, quando vemos John Wayne fracassar em meio a uma cena de ação devido a uma bala não removida de suas costas – e que foi projetada por, vejam só, uma mulher – dentro de um filme que, em sua primeira metade, trata exclusivamente do potencial icônico que sua figura mitológica transmite a um filme do estilo, pode-se dizer que o fim já era sem tempo. E é por isso que El Dorado é a maior refilmagem do cinema, caso seja encarado dessa forma. Destruir o que o primeiro filme, um clássico inegável, trabalhou para construir, e ainda assim ser uma das principais obras-primas – apesar de isso ser pessoal - do gênero que está servindo de alvo para a brincadeira o tempo todo, só poderia ser coisa de um filho da mãe como Hawks.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Calafrios (David Cronenberg, 1975)

The Parasite Murders; Frissons; They Came From Within; Orgy of the Blood Parasites; The Parasite Complex.

Estes foram alguns dos títulos atribuídos mundo afora ao primeiro filme de David Cronenberg, que por aqui ficou conhecido mesmo como Calafrios. Mas a bizarrice inegável dos nomes não passa nem próximo ao nível incalculável da escatologia que permeia cada quadro dessa curiosa comédia-de-horror-fantástico-sexual-com-toques-de-ficção-científica-non-sense, com a qual o gênio mais incompreendido do cinema moderno deu início à sua espetacular filmografia – composta por alguns dos filmes mais brilhantes das últimas décadas, como A Mosca, Gêmeos, Crash e Spider (sua obra-prima).

O palco de Calafrios é um condomínio de luxo e isolado da sociedade, localizado em uma ilha, onde um cientista, à beira da loucura, testa um novo parasita que desenvolveu para dar mais “garra” a uma sociedade exageradamente pensante. “Uma combinação de doença afrodisíaca e venérea que transformará o mundo numa orgia linda e desenfreada, pois o homem é um animal que pensa demais e que perdeu o contato com seu corpo e instintos”, segundo o próprio indivíduo, que acaba perdendo o controle da experiência ao testá-la em sua parceira – uma vagabunda que transa com todos no prédio e acaba disseminando o parasita.

O circo está armado, e Cronenberg faz do espetáculo um mero veículo para desfilar os elementos mais marcantes da primeira fase de sua filmografia, ou seja, muito sangue, peitos nus, violência escancarada e humor voluntariamente involuntário por mais de uma hora e meia. Mentira, né. Porque o canadense pode ser qualquer coisa, menos um bobo. E é por isso que, mesmo completamente deslocado da impecável continuidade do discurso psicanalista que Cronenberg fundamentaria nos anos seguintes, Shivers é um belo pontapé inicial à estruturação desse universo particular e multifacetário que viria a ser explorado tardiamente.

O alvo principal, aliás, é um dos temas preferidos do diretor, herdado de outros malucos do cinema surrealista da vanguarda, como Luis Buñuel: o sexo; o prazer carnal; o instinto animalesco que umedece a carne humana e expõe as fragilidades todas em uma mesma vitrine, suscetibilizando além da conta um grupo de pessoas isoladas do mundo e que precisam lutar pela sobrevivência – coisa vista anteriormente em O Anjo Exterminador, de Buñuel, por exemplo, um dos grandes filmes do universo. E é engraçado como, mesmo falhando miseravelmente no alcance do tom de mistério e de tensão pretendido, Cronenberg consegue realizar um grande filme se salvando pelo humor, ora premeditado, ora não, coisa pouco usual nele.

E, mesmo que a referida atmosfera fique longe da ideal, talvez especialmente pela falta de densidade – que não deixa de ser proposital, mas acaba conflitando esta outra idéia -, Calafrios é impecável do ponto de vista narrativo. O primeiro ato, um mosaico descosturado que apresenta aos poucos os personagens e o cenário da empreitada, deixa oculto o protagonismo da obra, transformando a curiosidade acerca do mistério no grande fio condutor – algo que é quebrado com a escolha de um ‘herói’ para a segunda metade, que se desfaz do mosaico pra centralizar as ações na luta pela sobrevivência de um só homem dentro daquela situação canibalesca.

Aliás, situação que lembra muito, tanto em espaço quanto na decorrência da ação, um dos mais populares e memoráveis jogos de videogame, Resident Evil – Shivers termina quase como um falso prelúdio para o jogo, mesmo que, no argumento, não tenha muita conexão. Isto sem contar a influência escancarada que certa seqüência teve sobre um filmezinho famosíssimo que seria feito quatro anos depois por um tal de Ridley Scott, sobre um certo bichinho malvado que aterroriza os tripulantes de uma espaçonave. Mas o mais brilhante, acima de tudo, é o desfecho fora de série dessa noite maldita, que rende uma das seqüências mais fantásticas da filmografia do diretor: o ataque ensandecido ao protagonista na piscina do prédio. A sacada final, então, é qualquer coisa de genial. Coisa de Cronenberg mesmo.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Five Easy Pieces (Bob Rafelson, 1970)

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- You're a strange person, Robert.
- What will you come to?
- If a person has no love for himself,no respect for himself... no love of his friends,family, work, something... how can he ask for love in return?
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- I do not find your language very charming.
- It isn't. It's direct.
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- I faked a little Chopin.You faked a big response.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

A Outra Costela de Adão

A Outra (Another Woman; Woody Allen, 1988)

Incrivelmente otimista, embora seja o filme mais amargo e intimista de Allen. É um conto singelo e poderosíssimo sobre uma mulher que chega a um ponto determinante da vida: o princípio do terceiro ato – analogia muito bem construída em meio às referências dramaturgicas constantes, que culminam na simbólica e maravilhosa seqüência do sonho -, quando finalmente percebe a caoticidade em que se transformou seu mundo particular. A Outra pode ser considerado facilmente um dos filmes mais carregados já realizados. É angustiante, sufocante, uma experiência sadicamente claustrofóbica seguir os passos mortos daquela mulher solitária e insegura, que praticamente virou as costas para a sociedade – e, consequentemente, para a vida - ao perceber que o silêncio no qual se refugiava era simplesmente o grito de desespero que guardava bem ao fundo de sua garganta, enosado, incômodo e impotente. Talvez não exista nada mais cruel do que o momento em que a personagem de Mia Farrow descreve a protagonista para seu psiquiatra, enquanto ela, interpretada de forma indescritível por Gena Rowlands, engole tudo como se bebesse em uma só tragada uma taça cheia de vinho fermentado a ponto de ser considerado vinagre. E mesmo em meio a tanta dor, tanto penar, é admirável que o diretor consiga – proeza semelhante à de seu mestre, Ingmar Bergman, em sua obra-prima máxima, Gritos e Sussurros – concluir o filme de maneira tão bonita, concedendo à sua protagonista não a desejada redenção, mas uma injeção de esperança que a lembra de que ainda existem possibilidades de se transformar o futuro.

Meu preferido continua sendo Annie Hall, mas não vou mentir pra vocês: A Outra é a obra-prima da carreira de Woody Allen. Um filme perfeito.

A Costela de Adão (Adam’s Rib; George Cukor, 1949)

Mordi minha boca malvada que disse que o Cukor tinha mão frouxa pra comédia. A Costela de Adão é maravilhoso, talvez o filme definitivo feito em cima daquela velha fórmula que tanto fora – e é – repetida em Hollywood: a guerra entre os sexos representada por uma batalha cotidiana e inusitada entre marido e mulher. No caso de Adam’s Rib, o pontapé inicial para a confusão é uma tentativa de assassinato, cometida por uma mulher cansada de ver seu marido “pular a cerca”. Spencer Tracy e Katherine Hepburn fazem o casal de advogados designados para defender ambas as partes – respectivamente acusação e defesa. Detalhe: os dois são casados, ela é uma feminista que deseja provar de uma vez por todas os preconceitos e a desigualdade social em relação aos direitos das mulheres e ambos vão duelar no tribunal – e em sua relação conjugal, consequentemente, conforme mergulham cada vez mais no caso. E é muito curioso como o Cukor, que normalmente esquece – ou faz de conta que não quer saber - que um filme pode ter estrutura narrativa, monta de maneira muito inteligente toda a preparação em graus para o estouro final, começando com o embate advogado/advogada, passando pra homem/mulher e fechando o ciclo, finalmente, na relação marido/esposa dos dois, recheada de gags incríveis. Mas não adianta: o que faz A Costela de Adão ser um filme acima da média, sem dúvidas, é o entrosamento irrepreensível entre Tracy e Hepburn, dois monstros na tela, dois gênios na comédia. Auxiliados pelos diálogos sempre enxutos e certeiros e pelas situações divertidíssimas que acarreta a disputa deles dentro do tribunal, a dupla transforma essa inusitada comédia de costumes no provável grande filme da carreira de Cukor.

domingo, 20 de abril de 2008

Meus 25 Filmes Preferidos Nessa Semana

O Demônio das Onze Horas (Pierrot le Fou; Godard)
No Silêncio da Noite (In a Lonely Place; Nicholas Ray)
O Ano Passado em Marienbad (L'Année Dernière à Marienbad; Resnais)
Meu Ódio Será Tua Herança (The Wild Bunch; Sam Peckinpah)
O Anjo Exterminador (El Angel Exterminador; Luis Buñuel)
Corrida Sem Fim (Two-Lane Blacktop; Monte Hellman)

Cada Um Vive Como Quer (Five Easy Pieces; Bob Rafelson)
Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (Annie Hall; Woody Allen)
A Tortura do Medo (Peeping Tom; Michael Powell)
Profissão: Repórter (Professione: Reporter; Michelangelo Antonioni)
Jejum de Amor (His Girl Friday; Howard Hawks)

Repulsa ao Sexo (Repulsion; Roman Polanski)
Gritos e Sussurros (Viskningar Och Rop; Ingmar Bergman)
A Morte Num Beijo (Kiss Me Deadly; Robert Aldrich)
Trágica Obsessão (Obsession; Brian De Palma)
O Samurai (Le Samourai; Jean-Pierre Melville)
Blow Up (Blow Up; Michelangelo Antonioni)

A Marca da Maldade (Touch of Evil; Orson Welles)
Janela Indiscreta (Rear Window; Alfred Hitchcock)
Week-End à Francesa (Week-End; Jean-Luc Godard)

Depois de Horas (After Hours; Martin Scorsese)
Veludo Azul (Blue Velvet; David Lynch)
Almas Perversas (Scarlet Street; Fritz Lang)
São Paulo Sociedade Anônima (idem; Luis Sérgio Person)
Era Uma Vez no Oeste (C’era Una Volta Il West; Sergio Leone)

Rapidinhas

Prelúdio Para Matar (Profondo Rosso; Dario Argento, 1975)

Prelúdio Para Matar é um filme de picos. Provavelmente atinge o casamento máximo entre imagem e som para construção de uma ambientação própria; de clima; de tensão. Cada seqüência de mistério, de investigação ou assassinato, sempre conduzidas como uma virgem suicida pelos acordes rasgados, gritantes e abusivos da trilha-sonora, consegue impressionar como poucas coisas já filmadas conseguem. É praticamente uma amplificação atmosférica de Império dos Sonhos, só que ainda mais brilhante nesse sentido. O curioso, porém, é o fato de a própria trilha-sonora parecer pontuar a pequena discrepância qualitativa de Prelúdio Para Matar – não simplesmente por esses momentos sem som perderem o mais fundamental atrativo do filme, eu acho. As cenas com a jornalista, por exemplo, parecem fazer parte de outro filme – ou estarem ali somente para dar vazão à troca de informações do protagonista com o espectador. Sem contar que o final a la Sexta-Feira 13 também decepciona – dava pra esperar algo bem mais ousado levando em conta a habilidade do Argento em construir toda a trama-sem-trama do filme. Aliás, levando em conta que o diretor parte do mesmo ponto de partida de Blow Up – é uma grande homenagem ao filme, aliás -, não tem como não comparar: a resolução do mistério e da brincadeira real/imaginário do Antonioni dá uma surra na do Argento, mesmo que naquele caso não seja a prioridade . Mas tudo isso não é suficiente para fazer de Prelúdio Para Matar um filme menos sensacional.

Os Homens Preferem as Loiras (Gentlemen Prefer Blondes; Howard Hawks, 1953)

O grande momento da carreira de Marilyn Monroe é Quanto Mais Quente Melhor, obra-prima da comédia sofisticada de Billy Wilder. Mas ninguém, nem mesmo Wilder no auge de sua genialidade, soube utilizar as principais características da persona cinematográfica de Monroe como Hawks neste divertido musical cômico de estúdio. O filme passa longe de ser uma das obras-primas do diretor, é claro, mas impressiona por fundamentar ainda mais um fato impossível de ser contestado: Hawks é tudo aquilo que Marc Foster queria ser, mas não vai conseguir jamais: um verdadeiro camaleão cinematográfico. O mais curioso, inclusive, é a consciência de Hawks ao tratar de seu próprio material, principalmente no que diz respeito à sua atriz – que ainda nem era o símbolo que seria anos depois, mas enfim. A principal característica de Monroe é transposta para o filme, raso, seco, todo colorido e exagerado, inegavelmente e plenamente construído em volta da ideologia da “dondoquinha fútil e mimada” que só pensa em homens ricos, dinheiros e diamantes. É quase um filme de porcelana. E o diretor, sabendo que extrapolou o tempo todo, ainda promove uma encenação de seu próprio universo ficcional no final – uma metalinguagem sem exteriores, inusitada, entre uma seqüência e o próprio produto. Mas a melhor coisa, de longe, é o personagem do nobre milionário inglês que, na realidade, é uma criança. Suas duas participações no filme são geniais – principalmente naquele que é o melhor momento do filme, quando Marilyn fica entalada na janela de uma cabine. Bobo, mas ótimo.

Os Corruptos (The Big Heat; Fritz Lang, 1953)

Estou começando a achar que o Lang deveria ter sido proibido de filmar noirs. Almas Perversas é uma das mais fundamentais obras-primas do estilo, todo sarcástico, amoral, recheado de personagens inescrupulosos e com o anti-herói mais anti-herói do mundo, por promover seu próprio fim pela burrice, pela inocência com a qual rege sua vida – Crime e Castigo não teria tanta densidade jamais. Os Corruptos, por sua vez, se prende ao universo da corrupção dentro das relações políticas de um município, seguindo aquela regra do filme policial da época, mas não deixando de lado a ironia pura e desmedida ao quebrar com a visão ainda em construção da ideologia que ficaria impregnada por longos anos no consciente social dos norte-americanos, o chamado American Way of Life. Na carona, Lang ainda constrói uma das mais intrigantes tramas do noir, evocando os principais elementos do estilo e procurando não transgredir, como fizera anteriormente, simplesmente posicioná-los de forma atraente. Além disso, ainda é ainda é um dos filmes que conseguem tratar de forma mais sincera sobre o ato da vingança, em especial pela consciência do protagonista de que a morte da esposa foi conseqüência de seu excesso de dedicação – e descontrole – na investigação que conduzia. É um filme bastante duro, lindamente fotografado e muito bem comprimido em seus 89 minutos, fato que poderia ter transformado filmes como Metrópolis, que o Lang fez ainda na Alemanha, no início da carreira, em obras-primas.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Two-Lane Blacktop (Monte Hellman, 1971)

Jamais poderia imaginar que um filme de corrida de carro fosse se transformar em um dos meus preferidos. Mas aconteceu. A minha sorte, porém, é que Two-Lane Blacktop, essencialmente, pode ser qualquer coisa, menos um filme de corrida. É uma experiência devastadora, introspectiva, hipnotizante. Um faroeste moderno travestido de road-movie contracultural que parece ter sido idealizado através de alguma convergência espiritual e ideológica indescritível entre Hawks e Antonioni. Um olhar despido de julgamentos, de predefinições, sobre um universo destituído de passado e presente, de rumo, de sentido, de comos e porquês – um universo de espaço sem tempo. É o desconserto de um grupo de almas mecanizadas – poucas coisas são tão cruéis quanto ver o cotidiano de melhores amigos ter o silêncio quebrado apenas por comentários alienígenas sobre carros e sua mecânica, sobre corridas, apostas e nada mais – que correm, correm, correm, mas não encontram um destino. É a inclusão de fatores externos dentro de uma rotina insípida que não gera nada a não ser a continuidade de um processo cíclico de autodestruição – que, na realidade, não tem fim. Não tem fim, porque se trata da vida de pessoas que já nasceram mortas, encaixotadas, que apenas precisam se dar conta disso – e a tal corrida que apostam ruma unicamente a essa descoberta, e nada mais. Que, assim como um carburador, só têm funcionalidade quando inseridas em meio ao sistema de um automóvel: nulas, caladas, sustentando seu reflexo de inexistência, comparando-se regularmente a peças de carro ou até mesmo a insetos. Pessoas que não possuem nome, chamadas apenas de Piloto, Mecânico e Mulher, sendo que o mais humano deles, ou talvez o único que consiga absorver as multifacetas do mundo que o cerca, recebe simplesmente a denominação de GTO – e é aí que entram James Taylor, Dennis Wylson, Warren Oates e Laurie Bird, talvez o grupo de protagonistas mais genial que já atuou em um filme (mesmo que dois deles sejam músicos, por exemplo – Wylson, inclusive, era nada mais nada menos que um dos integrantes do Beach Boys, bandas das mais geniais). E Hellman sabe que não precisa ser explícito, exagerado, e faz talvez o filme mais sóbrio do mundo. E, por incrível que pareça, o emblemático plano final, com a celulóide queimando, se desfragmentando, depois de a imagem entrar em um processo gradativo de lenteamento em meio a uma seqüência qualquer, é a coisa mais sensata que ele poderia ter feito para encerrar seu próprio filme. Porque o fim, no final das contas, já havia sido celebrado no primeiro frame do filme.

É muito difícil transformar em palavras o que resta de uma experiência tão sensorial quanto Two-Lane Blacktop. Acho que é melhor você fazerem de conta que não leram nada.