quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Pistoleiros do Entardecer (Sam Peckinpah, 1961)

CRÍTICA
3,5/4

Pistoleiros do Entardecer (Ride in the High Country, 1962) pode não ser o mais reconhecido, poético, violento ou preciosista faroeste da brilhante carreira do norte-americano Sam Peckinpah, autor de algumas das mais impressionantes obras do período de reformulação do cinema hollywoodiano no final dos anos 60. Pode não ser seu momento mais marcante, nem muito menos o mais complexo narrativamente, restando para alguns como um simples projeto no qual esboçara temas e características a serem desenvolvidas subseqüentemente. Pode até ser encaixado nisso tudo, não nego, não ouso, mas de uma coisa podem ter certeza. É, provavelmente, um dos mais fundamentais pontos de transgressão da curta história de um dos gêneros mais deliciosos do cinema.

Desde a seqüência de abertura, uma espécie de registro da decadência de dois dos maiores ícones do faroeste norte-americano em décadas anteriores, Randolph Scott e Joel McCrea, ambos em atuações monstruosas que certamente merecem título na posterioridade, a mais singela e outonal obra de Peckinpah fotografa os penúltimos suspiros e o rompimento incandescente do manto místico que acobertava o universo do “velho-oeste”, desenvolvendo estas características sob a condição de uma dupla de cawboys aposentados que retomam por um momento seu antigo ofício não apenas para resgatarem valores perdidos com o fim de sua profissão, mas para encontrarem uma forma de sobrevivência dentro de um meio no qual não conseguem se inserir: a civilização moderna, que enterra por definitivo seus antigos conceitos.
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Outros diretores viriam a retratar o tema posteriormente, incluindo o mestre italiano Sergio Leone, em sua obra-máxima, Era Uma Vez no Oeste, mas o título de precursor neste aspecto é exclusivo de Peckinpah. Em todo o seu desenvolvimento, Pistoleiros do Entardecer nos transmite a amarga sensação de estarmos vendo um conto fúnebre sobre o gênero, fato que transforma a lenta e intrusiva jornada em um incrível paradoxo multifacetário devido aos seus constantes momentos de humor, que não raramente fazem questão de ruir com a dimensão em que se estabelecem, propulsionando uma relação de ironia impagável, como na seqüência da celebração de um casamento dentro de um cabaré, no qual prostitutas são transformadas em damas de honra e bêbados congraçam o matrimônio – numa deliciosa e ousada subversão de conceitos.

Devido a estes fatores extraordinários, destituídos da habitual contemplação ao gênero e perfumados com pequenas doses de lirismo e corrosão, Pistoleiros do Entardecer se transforma em uma obra absolutamente fora do comum, até mesmo em um marco cinematográfico – obscurecido pelas sombras da história. Peckinpah lança um olhar extremamente perspicaz sobre a construção mitológica do gênero, desenvolvendo o quadro de personagens sem preestabelecer definições de conduta (assim como no genial A Marca da Maldade, de Orson Welles) e condensando toda sua simbologia em um dos diálogos mais microcósmicos da história, quando a principal personagem feminina do filme volta-se ao seu par romântico e questiona: “Meu pai diz que há o certo e o errado, o bem e o mal. Que não há nada no meio. Mas não é tão simples assim, é?”.

E é no embalo desta dúvida que o diretor, popularmente conhecido como o “Poeta da Violência”, constrói sua mais singela e marcante obra, e que vejo, particularmente, como seu melhor filme – e um dos melhores da história do gênero. Flertando ainda com temas que seriam explorados com maior ênfase em seus trabalhos seguintes (como a fé, discutida em uma antológica cena de jantar), Pistoleiros do Entardecer se estabelece de forma diferente a todos os outros projetos do diretor, sem as ruidosas câmeras lentas ou seqüências explosivas e sangrentas (com exceção de um único momento, pouco destacado), mas dando o pontapé inicial ao cerrar da portinha dupla que funcionava como portal para o mundo árido das pistolas empoeiradas. Peckinpah seria um filho da puta de primeira por causa disso, não fosse o fato de ter realizado uma obra-prima.

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