sábado, 10 de maio de 2008

O Assassino da Furadeira (Abel Ferrara, 1979)

Duma convergência entre Taxi Driver, Repulsion, O Inquilino, Sex Pistols e uma poça de vômito ensangüentado, nasceu O Assassino da Furadeira, primeira obra[prima] de Ferrara e facilmente um dos filmes mais retardados, toscos, vagabundos e injustiçados do mundo. É uma coisa extremamente bizarra, doentia, caótica, mas tão genial quanto incompreendida. Parte mais ou menos do mesmo ponto que o filme de Scorsese, inclusive sendo pontuado com diversas referências e subversões a elementos/frases/cenas populares dele, mas tem diferenças determinantes.

Aliás, praticamente tudo, já que, enquanto Taxi Driver apresenta uma visão burguesa e distante da marginalidade metropolitana, refletida sempre através dos olhos de Travis, uma peça descolada da engrenagem social que acaba poupando o espectador do contato direto, The Driller Killer tem como protagonista alguém que faz parte da escória – um artista plástico falido que participa intensamente da porra-louquice do submundo de drogas, putarias, shows de rock/punk e tudo mais que dá vida ao universo esquizofrênico desejado por Ferrara.

O filme aborda a entrada do homem em uma corrida transloucada em direção ao inferno, um processo gradativo de estado de loucura proporcionado pelo sufoco das dificuldades encontradas na sociedade moderna – falta de grana e de autocontrole, principalmente, o que acarreta todo o resto, no fim - que culmina no surto absoluto exteriorizado através de uma série de assassinatos cometidos com uma furadeira. Nada de justiça com as próprias mãos, porque ninguém é herói. O negócio aqui é piração completa, gosto por sangue em estado de demência.

E é um filme todo errado, amador, trabalho de iniciante mesmo – mas que tem muito a dizer e provocar, e acaba somente ganhando com o charme de toda a tosquidade provocada pela falta de estrutura narrativa, de grana – foi filmado ao custo de 20 mil dólares -, de sanidade. Não existe coerência, ritmo ou qualquer desejo de facilitar a fluência da estória – que nem existe também, na realidade -, algo que pode ser facilmente constatado devido ao fato de quase metade do filme ser composto de clipes da banda punk – em bares, apartamento de ensaio, o que for - dos vizinhos do protagonista – que, aliás, é interpretado pelo próprio Ferrara, um doente em potencial.

Mas nitidamente tudo não passa de uma brincadeira sem qualquer pretensão a não ser a provocação, psicológica e física, que ainda tem uns lances geniais de inversão de expectativa – ou de simbologias mesmo -, como numa das últimas cenas, em que uma musiquinha de ninar toca e, junto de sua expressão levemente feliz, dá a entender que o protagonista está sonhando algo bonito, mas na realidade imagina-se banhando no sangue de uma de suas vítimas – isso poucos momentos antes daquele final ainda mais genial, com a tela toda em vermelho e a garota deitando na cama com o namorado depois do banho, sem saber que ele está morto, e chamando ele carinhosamente prum amasso.

E o cara, um ferrenho incinerador do catolicismo, ainda aproveita pra brincar com certos elementos da igreja através de pequenas referências que, em muitos momentos, dão um tom cômico impagável ao filme – a primeira cena se passa numa igreja, com um mendigo tentando pegar a mão dele; o primeiro contato com uma furadeira acaba resultando em ele fazendo furos numa porta evocando o sinal-da-cruz, a pedido involuntário de sua amiga; numa das mortes ele ‘crucifica’ um mendigo numa parede furando suas mãos, clara alusão a Cristo; etc. – mas sem a densidade que traria em seus filmes seguintes.

O engraçado, aliás, é que, mesmo sendo um 'fracasso' até atualmente – o diretor já não é muito bem visto normalmente pelo público em geral, e esse é visto como seu filme mais podre -, O Assassino da Furadeira ainda serviu de base pra muitos slashers dos anos 80’, principalmente uma das maiores merdas que já filmaram, que se eu não me engano se chama Massacre, seco assim – é um filme que tem como protagonista um maníaco que foge do hospício e mata mulheres com... uma furadeira, mas a coisa é tão ruim que chega a dar pena de quem fez.

E ainda tem o lance do coelho morto, vindo de Repulsa ao Sexo, que o Ferrara retalha e depois fica mandando beijo pro olho dele, e das mortes geniais, principalmente dos mendigos, perfurados e estraçalhados sem dó – e depois de meter a broca na cabeça de um, inclusive, o maluco ainda dá beijo na testa também, haha -, e das delirantes variações visuais, como o uso das lentes vermelhas, o letreiro ‘this film should be played LOUD’ abrindo o filme, os enquadramentos esquizos e a montagem caótica, a utilização da cenografia decadente – mais uma referência a Polanski – quase como personagem, cheia de ambientes sujos, podres, velhos, cheirando a merda - dá até pra sentir do lado de cá -, com tudo isso aliado aos efeitos sonoros deturpados e alucinatórios e deixando o filme sempre com um tom de freneticidade absurdo.

Enfim. Sensacional. Um catalisador visceral perfeito das sensações que o movimento punk despertou e da influência disso na sociedade e dela no individuo, praticamente mutante, num filme completamente fora de qualquer padrão.

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