quinta-feira, 24 de abril de 2008

Calafrios (David Cronenberg, 1975)

The Parasite Murders; Frissons; They Came From Within; Orgy of the Blood Parasites; The Parasite Complex.

Estes foram alguns dos títulos atribuídos mundo afora ao primeiro filme de David Cronenberg, que por aqui ficou conhecido mesmo como Calafrios. Mas a bizarrice inegável dos nomes não passa nem próximo ao nível incalculável da escatologia que permeia cada quadro dessa curiosa comédia-de-horror-fantástico-sexual-com-toques-de-ficção-científica-non-sense, com a qual o gênio mais incompreendido do cinema moderno deu início à sua espetacular filmografia – composta por alguns dos filmes mais brilhantes das últimas décadas, como A Mosca, Gêmeos, Crash e Spider (sua obra-prima).

O palco de Calafrios é um condomínio de luxo e isolado da sociedade, localizado em uma ilha, onde um cientista, à beira da loucura, testa um novo parasita que desenvolveu para dar mais “garra” a uma sociedade exageradamente pensante. “Uma combinação de doença afrodisíaca e venérea que transformará o mundo numa orgia linda e desenfreada, pois o homem é um animal que pensa demais e que perdeu o contato com seu corpo e instintos”, segundo o próprio indivíduo, que acaba perdendo o controle da experiência ao testá-la em sua parceira – uma vagabunda que transa com todos no prédio e acaba disseminando o parasita.

O circo está armado, e Cronenberg faz do espetáculo um mero veículo para desfilar os elementos mais marcantes da primeira fase de sua filmografia, ou seja, muito sangue, peitos nus, violência escancarada e humor voluntariamente involuntário por mais de uma hora e meia. Mentira, né. Porque o canadense pode ser qualquer coisa, menos um bobo. E é por isso que, mesmo completamente deslocado da impecável continuidade do discurso psicanalista que Cronenberg fundamentaria nos anos seguintes, Shivers é um belo pontapé inicial à estruturação desse universo particular e multifacetário que viria a ser explorado tardiamente.

O alvo principal, aliás, é um dos temas preferidos do diretor, herdado de outros malucos do cinema surrealista da vanguarda, como Luis Buñuel: o sexo; o prazer carnal; o instinto animalesco que umedece a carne humana e expõe as fragilidades todas em uma mesma vitrine, suscetibilizando além da conta um grupo de pessoas isoladas do mundo e que precisam lutar pela sobrevivência – coisa vista anteriormente em O Anjo Exterminador, de Buñuel, por exemplo, um dos grandes filmes do universo. E é engraçado como, mesmo falhando miseravelmente no alcance do tom de mistério e de tensão pretendido, Cronenberg consegue realizar um grande filme se salvando pelo humor, ora premeditado, ora não, coisa pouco usual nele.

E, mesmo que a referida atmosfera fique longe da ideal, talvez especialmente pela falta de densidade – que não deixa de ser proposital, mas acaba conflitando esta outra idéia -, Calafrios é impecável do ponto de vista narrativo. O primeiro ato, um mosaico descosturado que apresenta aos poucos os personagens e o cenário da empreitada, deixa oculto o protagonismo da obra, transformando a curiosidade acerca do mistério no grande fio condutor – algo que é quebrado com a escolha de um ‘herói’ para a segunda metade, que se desfaz do mosaico pra centralizar as ações na luta pela sobrevivência de um só homem dentro daquela situação canibalesca.

Aliás, situação que lembra muito, tanto em espaço quanto na decorrência da ação, um dos mais populares e memoráveis jogos de videogame, Resident Evil – Shivers termina quase como um falso prelúdio para o jogo, mesmo que, no argumento, não tenha muita conexão. Isto sem contar a influência escancarada que certa seqüência teve sobre um filmezinho famosíssimo que seria feito quatro anos depois por um tal de Ridley Scott, sobre um certo bichinho malvado que aterroriza os tripulantes de uma espaçonave. Mas o mais brilhante, acima de tudo, é o desfecho fora de série dessa noite maldita, que rende uma das seqüências mais fantásticas da filmografia do diretor: o ataque ensandecido ao protagonista na piscina do prédio. A sacada final, então, é qualquer coisa de genial. Coisa de Cronenberg mesmo.

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