terça-feira, 15 de abril de 2008

Fuga do Passado (Jacques Tourneur, 1947)

Se eu precisasse apontar uma coisa de ruim nos filmes noir da primeira metade do movimento, mais precisamente a década de 1940, sem dúvida alguma escolheria os flashbacks – recurso que de certa forma virou marca registrada do estilo, mas que se perdeu em suas constantes transgressões temáticas e morais. É só ver, por exemplo, Uma Vida Por Um Fio, do russo Anatole Litvak, pra perceber o quanto perde de fluidez e de tensão um filme todo recortado por lembranças e explicações evocadas pela quebra da narrativa – naquele caso, em especial, toda a claustrofobia da estória de uma mulher presa à cama, devido a uma doença, que sabe que será assassinada em determinada hora da noite, é atirada descarga abaixo pelos constantes vai-e-vens (aliás, se jogasse todos os flashbacks fora, o diretor poderia montar um curta genial - de 15 minutos, no máximo).

O curioso, porém, é que mais de trinta dos quarenta e cinco primeiros minutos de Fuga do Passado formam um extenso flashback, utilizado para registrar os comos e os porquês dos rumos que a estória toma em seu prólogo. Curioso porque, no longa de Jacques Tourneur, a insistência em construir a estrutura através das memórias do protagonista, um Robert Mitchum completamente diferente do que se vê em O Mensageiro do Diabo ou Circulo do Medo ou faroestes como El Dorado – aqui até cena romântica o homem mais assustador do cinema faz! -, dá ao filme um charme ainda mais irresistível, transformando uma das brincadeiras mais inventivas de que se tem notícia com os principais elementos do noir – a femme fatale mais femme fatale de todas está aqui, por exemplo – em um trabalho de primeira linha.

Desde o início na cidadezinha pacata até o final, na mesma cidadezinha, agora tomada pela paranóia que envolve a enrolação interminável do protagonista com um mal feitor da cidade grande, Fuga do Passado é uma brincadeira de pega-pega sem qualquer resquício de diversão. E é impressionante a milimetricidade detalhistica do roteiro, sustentando idas e vindas e uma sobriedade impecável mesmo com as constantes aparições de personagens novos e que saem com a mesma rapidez, mortos ou não, além de sustentar muito bem a pendência do protagonista para ambos os lados femininos, o bom e o mau, e construir alguns momentos bem genuínos de charme e requinte românticos, coisa que pouco se vê em um filme policial – ainda que este tenha certos toques dramáticos além dos outros.

Mas o mais interessante é a ambigüidade que cada diálogo ou ação consegue transparecer dentro daquela máxima do noir, de o mundo ser feito de piranhas inescrupulosas, de não se poder acreditar em ninguém nem dormir sem a arma debaixo do travesseiro - o que em alguns casos é levado às últimas conseqüências pela forma e pelo conteúdo, mas aqui tudo é conduzido com muita tranqüilidade e mesmo assim chega ao extremismo pra quase todos os envolvidos. É sacanagem atrás de sacanagem, e até o último minuto não tem com ter certeza de quem está – ou estava - do lado de quem – tanto é que o filme termina com alguém tentando tirar esta mesma dúvida.

Grande, grande filme.

Um comentário:

Daniel Dalpizzolo disse...

Comentar o próprio blog é coisa de punheteiro, mas só quero deixar uma observação feita no orkut pelo meu amigo Ronald, do Cineart2, que eu achei interessante reiterar aqui. É a semelhança deste filme com Marcas da Violência, do Cronenberg. O pontapé inicial é praticamente o mesmo, e embora o desenvolvimento não resguarde tantas semelhanças, ambos têm alguns aspectos em comum sim.