domingo, 13 de abril de 2008

O Beijo Amargo (Samuel Fuller, 1964)

Grantville parecia ser a cidadezinha perfeita para um ex-prostituta tentar a sorte de conseguir embeber sua vida soturna em um pouco de banalidade. Mães passeiam com crianças pelos parques; homens cordiais encontram-se em esquinas para jogar conversa fora; as ruas parecem limpas, cristalinas, simétricas, ao contrário da sujeira e da podridão inesgotáveis de uma grande metrópole.

Um nome determinante, porém, faz o sonho despencar imediatamente aos olhos do mais crédulo dos fiéis: Samuel Fuller, diretor símbolo de audácia e transgressão (responsável por alguns ótimos trabalhos como o documento-de-recortes Agonia e Glória). A exemplo do que Lynch arquiteta em sua grande obra-prima, Veludo Azul, Fuller carrega de esperanças o universo pacato do interior dos Estados Unidos para, posteriormente, arremessar a lama quente e fedida a merda por todos os lados.

O Beijo Amargo pode até ser considerado um típico representante do cinema noir, mas no fim acaba sendo uma experiência suja, amoral, escandalosa e corruptuosa demais inclusive para o gênero – mesmo sendo exatamente estas as características principais do estilo, o que cria um paradoxo bastante interessante. É, na realidade, um melodrama rasgado por uma ironia muito distante de ser sutil, que consegue encontrar semelhanças, talvez, apenas no atual cinema de Lars Von Trier.

Aliás, é curiosa a relação que possui com aquela que talvez seja o mais virtuoso exemplo do cinema do dinamarquês, Dançando no Escuro. Porque, tanto em um quanto no outro, é notável a manipulação amoral de cada frame do filme para a acentuação e a fundamentação do discurso final - mas ao contrário do que pode parecer, no fim acaba sendo o mais imprescindível elemento para transformar o filme naquilo que ele realmente é, e não uma sacanagem desastrosa – talvez o grande exemplo disso seja o maniqueísmo das imagens

Porque a odisséia de mergulho em um mar cada vez mais preenchido de desgraça, que leva a protagonista a uma desilusão incontrolável com a sociedade na qual está inserida – mesmo que o fato não seja explícito, tanto quanto seus sentimentos, expressados apenas pela inaptidão de seu semblante de amargor quase indestrutível antes da explosão derradeira -, nada mais é do que Fuller cravando o dedo nas principais feridas da América para comprovar sua tese de que o sonho americano, na realidade, é a mais pura utopia, e que o sonho está distante de ser alcançado – principalmente diante de toda a perversidade que dá subsídio para a ilusão do American Way of Life.

Ainda mais para alguém que está na mira da brutalidade inescrupulosa de Fuller.

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