
Trágica Obsessão, substancialmente, pode ser considerado uma releitura daquela que provavelmente seja a grande obra-prima – junto de Janela Indiscreta, meu preferido – do cinema de Hitchcock, uma estória de amor construída em dois atos distintos e mergulhada em um tom inenarrável de remorso e obsessão – no filme do ‘gordinho’, o personagem de Stewart se recupera do choque que é ver a mulher que ama se suicidar, quando encontra outra que se parece com ela e tenta reviver o romance. O filme em questão é Um Corpo Que Cai, clássico do suspense e que praticamente resume a plotline de Obsession, que com algumas variações retorna ao tema romântico-obsessivo ao apresentar o retorno de um empresário, que, depois de mais de 20 anos, ainda se culpa pela morte da mulher, ao local onde se conheceram, e descobre que por lá encontra-se uma mulher de aparência física incrivelmente semelhante com a de sua falecida esposa.
A diferença entre o cinema de Hitchcock e o cinema de De Palma, portanto, fazem com que Trágica Obsessão eleve o espírito e a pretensão de Hitchcock à enésima potência, num surpreendente surto narrativo que explora com um preciosismo único as variações dramatúrgicas do roteiro original, explorando de forma ainda mais perturbadora as condições emocionais e psicológicas das peças que montam o quebra-cabeça denso e instigante desta dramática trama de obsessão. E é engraçado como, mesmo sendo uma ‘releitura’, Trágica Obsessão termina por ser um filme completamente diferente de Vertigo. De Palma enrola e desenrola cada elemento do filme, inverte as posições dentro da estrutura do roteiro, mexe aqui, ali, entorta lá, e o resultado é simplesmente orgástico, surtante. Os primeiros vinte minutos, sem quaisquer cerimônias, vêm como um baque, um choque em quem aguarda o clímax inicial para lá pelos cinqüenta minutos de filme rodado.
A partir daí, De Palma revela um novo filme. Muito distante do começo eletrizante, tenso. Muito menos tenso, mas ainda mais sufocante, transformando seu suspense em um filme sobre a culpa, o remorso, sobre a torturante sobrevida que o protagonista, preso a um erro do passado, desenvolve a partir do momento em que precisa conviver diariamente com o fato de ter tido a vida das pessoas que mais ama em suas mãos – e jogado-as fora. É um filme sobre a segunda chance; a chance que temos de reverter nossos erros, converter nossos pecados. E poucos trabalhos depalmianos foram tão particulares sob o ponto de vista emocional, dramático – talvez apenas O Pagamento Final se assemelhe em dor e substância a Trágica Obsessão, que, aliás, tem em seu final alguns elementos bem notáveis daquilo que viria a ser desenvolvido mais tarde por De Palma nesta obra-prima do drama policial. É um trabalho bastante profundo, muito distante da artificialidade que normalmente atribuem ao cinema do diretor.
E nada contribuiria mais para esta construção climática do que aquela trilha-sonora arrepiante, inquietante e estupradora de Bernard Herrmann – colaborador de confiança de Hitchcock, aliás. Talvez só a fotografia em tons fantasmagóricos de Vilmos Zsigmond, constantemente em conflito com luzes de velas, feixes de luz em janelas e ambientes em tons outonais, esmaecidos, que deixam uma sensação onírica imprescindível para o tom de romantismo macabro que a estória de amor/obsessão por um passado inemutável requer.
Mas é no terço final que De Palma finalmente comprova o porquê de eu ter chamado-o de cineasta de excessos, brincando feito uma criança autista com sua própria criação ao filmar um desfecho absolutamente insano, doentio, retardado e etc para uma estória tão bonita e profunda. E o pior de tudo é que só assim Obsession seria a obra-prima perfeita e sincera que é. Porque o cinema, acima de tudo, é baseado no poder de manipulação da imagem. E ninguém precisa avisar que este é exatamente o brinquedo preferido de De Palma.
Simplesmente descaralhal, emocionante, sufocante, bizarro, esquizofrênico, genial, um passo à frente do restante da humanidade. O filme mais subestimado do mundo.
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