quarta-feira, 2 de abril de 2008

Almas Perversas (Fritz Lang, 1945)

Algo de muito estranho permeia esta magnífica obra de Fritz Lang. Uma ambigüidade turva, talvez por ser demasiadamente clara. Uma densidade de superfície, talvez por ser demasiadamente profunda – não saberia distinguir exatamente o quê. O que fica explícito, porém, é o senso de ironia incongruentemente borrifado em cada seqüência deste preciosista jogo de canastrices intermináveis, através do qual Lang apresenta sua visão amarga da moral que rege a sociedade moderna – que nada mais é do que a babá perversa das relações humanas, a imoralidade.

E nada melhor do que situar este seu minucioso olhar sobre a corrosão da vergonha facial no ambiente mais propício à impiedade e ao controle de marionetes dramatúrgicas, o noir – também conhecido como o melhor gênero do cinema. Através da obsessão de um bancário falido por uma mulher sedutora – e ainda mais falida -, Lang ultrapassa as barreiras do perfil clássico do estilo para construir, com toda a sua pompa e senso estético habituais, um delicioso e gradativo afogamento das personagens no mar de conseqüências que brotam de seus próprios excessos.

Mas o mais interessante, acima de tudo, é a forma com a qual Lang desenvolve as relações pessoais deste seu pequeno rebanho de protagonistas. Ninguém é poupado dos contornos obscuros que acentuam toda a mordacidade existente nas ruas sujas e escuras da velha Nova York. Nem mesmo o “herói” – que fica muito longe de se encaixar em uma definição como esta, devido à sua mediocridade -, escapa da dubiedade ao se portar, em certos momentos, da mesma forma como seus algozes – embora, em grande parte do filme, seja um medíocre mesmo (no qual, inclusive, podem-se enxergar fortes influencias sobre o protagonista de O Homem Que Não Estava Lá, dos Irmãos Coen).

A grande brincadeira, aqui, é cortar qualquer resquício de escrupulosidade durante toda o desenrolar da estória. Não existem dúvidas, não existem remorsos, sequer anseios antes de passar por cima de qualquer outra pessoa – isto é, na primeira parte da narrativa, que muda completamente de tom no terço final, inteligentemente. A regra, aliás, é exatamente esta: todos os personagens necessitam mover as peças por sobre as intenções do próximo para conseguirem concluir seu atual objetivo. E todos cedem, todos caem. Uma armadilha que pega a qualquer um.

Armadilha que, por sinal, quase prende o próprio Lang, quando começa a ensaiar uma exagerada onda de punição sobre os suas “ovelhas”. Não que o final não seja exatamente isso – e nada mais é do que isso mesmo -, mas o diretor consegue driblar a estupidez de uma decisão como esta (afinal, construir o filme todo acerca da inescrupulosidade descabida e querer julgar tudo depois seria uma grande bobagem) ao retirar uma grande e essencial carta da manga: recuar seus esforços unicamente para a degradação do protagonista, que se fodeu o filme e a culpa foi toda sua. E é neste ato que Edward G. Robinson nos prova o porquê de ter sido um dos maiores atores de todos, comunicando toda a loucura e a danação sem precisar de nenhum outro artifício que não seja sua expressão facial.

Embora a atipicidade do tom pareça desenhar qualquer coisa de sentido completamente oposto em grande parte de sua duração, Almas Perversas é um dos representantes mais genuínos e complexos do cinema noir. O jogo de verdades e mentiras proporcionado através da inserção de uma femme fatale no cotidiano de um cidadão comum, aliás, não apenas vive para ocupar uma das principais posições da lista de grandes filmes deste gênero. Também é, mesmo com a existência de ótimos/excelentes filmes como Os Corruptos, M, Metrópolis e O Diabo Feito Mulher, o principal trabalho de Lang no cinema – dentro daquilo que tive oportunidade de ver até hoje.

2 comentários:

Roberta Scheibe disse...

Graaaande Daniel! Seu blog está associado ao meu...

Só que o Santa Saliência entrou em recesso por tempo indeterminado. hehehe.
Beijos.
Excelente blog!

Daniel Dalpizzolo disse...

você e seus recessos, haha.

beijo, Robes.