sábado, 26 de abril de 2008

El Dorado (Howard Hawks, 1966)

Aproximadamente cinco anos separam o dia de hoje da primeira vez em que vi El Dorado, num VHS surrado, com chiado, cores esmaecidas e tudo aquilo que transforma o filme em fita em uma experiência inusitada – e divertida – como nenhuma outra. Aliás, pouco recordava do enredo em si, tanto é que nem guardava na memória o fato de que se tratava, superficialmente, de uma releitura completa[mente diferente] de uma das maiores obras-primas do western, o microcosmo do estilo hawskiano por excelência, Onde Começa o Inferno – o que inclusive gerou uma pequena surpresa depois daquele prólogo maldito de quase uma hora de duração.

Mas vamos por partes. Não pretendo me exceder, aprofundar visão ou nada parecido, principalmente por estar começando a escrever este texto em um horário pouco favorável – dez pra meia-noite neste exato momento, sendo que tenho de acordar às 5h20min. Por isso, antes de qualquer coisa, já deixo claro que meu objetivo é ser o mais direto possível, ou seja, procurarei ser curto e grosso, simplesmente, sem fazer rodeios pra tentar esconder qualquer elemento irrevelável do filme – principalmente por ser meio complicado analisar superficialmente um trabalho tão complexo e ainda não utilizar do próprio filme pra fundamentar o discurso.

El Dorado é um dos últimos filmes do maior gênio do cinema norte-americano, Howard Hawks, feito depois de ele ter finalmente compreendido a queda da ideologia pragmática e situada em um universo retrógrado e apolítico que procurava utilizar como regência da grande maioria de seus filmes – principalmente daqueles em que seu código de honra e ética pessoal, transportado quase sempre para o velho oeste, era posto em prova ou simplesmente evocado de certa forma. E é justamente por isso que o filme todo é permeado por uma atmosfera de auto-sátira, auto-homenagem, auto-releitura. Não apenas ao seu próprio universo, mas ao cinema clássico, de uma forma geral.

Alguns especialistas consideram Hatari! como o divisor de águas entre o Hawks clássico e o Hawks moderno. Não discordo. A aventura africana protagonizada pelo seu talismã John Wayne talvez seja o filme em que o diretor mais se desloca, ou realmente de desprende, por definitivo, da sociedade em que vivia. É um filme de universo próprio, fechado em sua teoria de conduta particular, construído exclusivamente para que Hawks desfilasse boa parte de suas principais temáticas e interligando-as em um mesmo ponto de convergência – aliás, Hatari! é outro dos filmes que preciso rever com urgência, já que fazem uns quatro anos que assisti.

O El Dorado, portanto, faz parte da segunda fase, já que foi feito depois (né). E também não discorda. A primeira hora do filme, que talvez seja o que o prólogo mais extenso de toda a história do cinema que eu conheço até o momento, nada mais é do que uma pequena homenagem de Hawks a um gênero que, como ele mesmo já previa anteriormente, junto de Peckinpah (vide Pistoleiros do Entardecer) e alguns outros realizadores, estava terminando de cavar sua própria cova – que levaria junto consigo outras grandes figuras da primeira metade do século XX, como o cinema insinuante de Billy Wilder e os musicais embebidos de alegria da velha Hollywood.

A pequena viagem do personagem de John Wayne, um pistoleiro de encomenda, evoca, separadamente, filmes como Por um Punhado de Dólares, de Sergio Leone – o homem que surge em meio a uma guerra entre duas famílias, mas que, diferentemente do filme do italiano, não se apega a ela antes de encontrar uma necessidade particular -; Parceiros de Morte, de Sam Peckinpah, em especial pelo senso de justiça e de ética que fazem com que o remorso sobreviva como conseqüência da tragédia mesmo em meio a um mundo regido invariavelmente pela frieza individualista – personificada na figura do pai e sua reação à morte do filho; e O Homem Que Matou o Facínora, de John Ford, que tem por base o estudo do mito, explorado na magnífica seqüência do bar; entre outros.

Aliás, o curioso é que Hawks, em El Dorado, joga com o clássico de maneira bastante inusitada, de certa forma até mesmo transgressora, estruturando a primeira parte do filme em elipses carregadas de inexatidão e sem previsão de rumo, em um processo de quase improviso. E pelo menos dois elementos, desta feita não narrativos, mas visuais, demonstram a vigência da modernidade que em breve seria ainda mais explorada em um de seus mais maltratados – pela crítica - e surtados filmes, Rio Lobo: um zoom no rosto do personagem de Wayne, em momento determinante, e um corte descontínuo entre um e outro plano de uma mesma ação, escancarando na tela o processo de montagem do filme – coisa que na época já havia se tornado comum, depois de ser explorado à exaustão pelo seu próprio criador, Jean-Luc Godard, mas que eram incomuns para o cinema classicista do diretor.

Mas é na segunda metade de El Dorado que Hawks finalmente apresenta sua carta-escondida-na-manga, determinando a propulsão de um filme já espetacular ao mais sincero patamar de obra-prima. É o inicio da ‘trama’ principal, quando John Wayne retorna a El Dorado, à briga entre famílias, para auxiliar seu amigo, interpretado com a habitual intensidade de um dos maiores atores de todos os tempos, Robert Mitchum, atualmente xerife desiludido por uma mulher e cada vez mais afogado no alcoolismo – uma das primeiras brincadeiras de Hawks com seu próprio Rio Bravo, construído acerca de um extremo oposto, onde o xerife era auxiliado por um alcoólatra na mesma condição. É a decadência do velho oeste sob forma de uma cidade sem lei, mas o mais interessante é que o principal foco continua sendo Wayne e a desconstrução do mito. Porque John Wayne, no caso, é o velho oeste, e sua condição é determinante para o tom de mortalidade que impregna em cada frame de El Dorado.

E a genialidade de Hawks chega a um nível tão forte, tão ousado, tão imortal, que fica impossível não se impressionar com a versatilidade inquestionável com a qual ele trata do material, que nada mais é do que uma releitura-refilmagem-ueréver de seu principal faroeste – e quando se diz releitura é releitura mesmo, é o próprio Rio Bravo, em seu esqueleto, transposto para a tela, em alguns casos com seqüências idênticas, mas que terminam por ser o extremo oposto das originais em virtude da alternância de um simples elemento. É o mesmo filme, só que em um tom assustadoramente diferente, através do qual Hawks comprova que, com a troca de uma pequena coisinha da cena, pode-se alcançar um resultado final inimaginável, surpreendente – pequenas escolhas e suas conseqüências, hein.

E é assim que Hawks constrói seu conto definitivo sobre a chegada do fim do cinema clássico, em especial do ciclo do faroeste. Porque, quando vemos John Wayne fracassar em meio a uma cena de ação devido a uma bala não removida de suas costas – e que foi projetada por, vejam só, uma mulher – dentro de um filme que, em sua primeira metade, trata exclusivamente do potencial icônico que sua figura mitológica transmite a um filme do estilo, pode-se dizer que o fim já era sem tempo. E é por isso que El Dorado é a maior refilmagem do cinema, caso seja encarado dessa forma. Destruir o que o primeiro filme, um clássico inegável, trabalhou para construir, e ainda assim ser uma das principais obras-primas – apesar de isso ser pessoal - do gênero que está servindo de alvo para a brincadeira o tempo todo, só poderia ser coisa de um filho da mãe como Hawks.

Nenhum comentário: