sábado, 22 de março de 2008

Inverno de Sangue em Veneza (Nicholas Roeg, 1973)

Poucos cineastas conseguiram alcançar um tom de desconforto tão impressionante quanto o empregado por Nicholas Roeg à atormentada viagem de meia-estação da família Baxter pelo terreno úmido e escuro de uma Veneza sem o menor brilho – esqueçam as paisagens a la Grimm de Noites Brancas; esqueçam. O desenvolvimento esquizofrênico e extremamente sensorial deste drama de horror soturno e devastador, porém, não é nada, nada gratuito. Trata-se da jornada introspectiva de um casal que acabou de perder a filha em um terrível acidente, e a forma com a qual ambos lidam com a tragédia.

Os primeiros cinco minutos do filme, aliás, que apresentam justamente o momento que dá início ao desenvolvimento da trama, mostram também o domínio absurdo de Roeg sobre a linguagem utilizada para causar esta imprescindível sensação de estranhamento no espectador. Através da montagem de duas ações paralelas, uma envolvendo os filhos brincando no pátio e outra com os pais trabalhando na sala de casa, o diretor arma um jogo de reações impecável, construindo uma atmosfera de ligação espiritual entre os quatro elementos da família, sem precisar de qualquer palavra – que culmina na sensação do pai de que algo havia acontecido com uma das crianças, o que de fato era verdade.

A montagem alucinada, descontínua, truncada, atira o espectador dentro de um universo próprio, de linguagem singular. Não se pode esperar de Inverno de Sangue em Veneza algo que ele não está disposto a oferecer: uma sessão de cinema confortável e banal. É um filme, acima de tudo, sensorial, uma experiência atormentada e atormentadora, na mesma medida. Não existe propriamente uma continuidade diegética, uma preocupação com a organicidade, nem nada parecido, mas sim um controle absoluto sobre o trauma desenvolvido pelos patriarcas da família e o tormento que lhes cerca diante da realidade incontrolável da vida que levam.

E é quando a personagem de Julie Christie, fabulosa, charmosa e tudo o mais, resolve utilizar-se dos serviços de uma cega médium, com a “segunda visão”, que coisas começam a acontecer. Dizendo ter uma “mensagem do além” enviada pela filha, ela acaba despertando a curiosidade (e propulsionando uma obsessão desmedida, além de uma mudança radical em seu comportamento) da mulher, dando início ao desenvolvimento de uma jornada fúnebre de reinstalação dentro de seu próprio universo.

E, quando chega ao final da “estória” (entre aspas mesmo), polêmico, surtado, absurdo, Roeg mostra pra nós o quão genial conseguiu ser, concluindo a obra sem amarrar nada e, além do mais, deixando uma sensação estranha, desconfortante, elevada à estratosfera pela revelação do significado de uma das mais emblemáticas imagens atiradas na tela durante o desenvolvimento – e, puta que o pariu, como aquilo deixa um gosto amargo na boca.

É um filme fora de série, fora de padrões, feito com uma naturalidade absurda e dono de algumas das seqüências mais sinceras que eu já vi serem filmadas – em especial a cena de sexo entre Donald Sutherland e Julie Christie, de longe a mais bonita e significante de todo o cinema. Sim, eu sou exagerado mesmo. Mas o filme em questão também é. Somos todos representantes de uma mesma esfera, portanto.

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