sexta-feira, 21 de março de 2008

O Samurai (Jean-Pierre Melville, 1967)

Os minutos iniciais de O Samurai dão o tom exato desta obra-prima sofisticada e metafórica do film noir francês. Em alguns pares de seqüências de planos longos e cadenciados, tanto na ação quanto no ritmo da montagem, somos apresentados a Jeff Costelo (Alain Delon, beirando a inexistente perfeição), um assassino de aluguel que se prepara para o cumprimento de sua mais recente missão. Solitário e praticamente mudo diante de seu único companheiro, um canário, Jeff submerge para dentro de um chapéu e um sobretudo que lhe servem de disfarce anunciado, partindo em subseqüência para a rua, onde calmamente furtará um automóvel e o conduzirá até um emplacador, a fim de trocar a identificação.

Não é um momento de palavras. Nenhuma palavra. Os primeiros 12 minutos de O Samurai são silêncio absoluto - assim com boa parte do filme. Em sua fala de apresentação, porém, Delon descreve melhor seu personagem do que um texto de duas páginas o faria. Ao adentrar um cabaré, onde precisa executar sua missão, e conduzir-se até a sala do proprietário, a vítima, Delon é questionado pelo homem: "O que o senhor deseja?". "Eu vim matar você", responde, segundos antes de desferir-lhe uma bala em meio ao peito. A metodicidade e a frieza incalculável deste homicida de encomendas, embrulhadas por sua cartilha de conduta inspirada nas tradições do samurais japoneses do século XV, são o foco principal desta singular obra de Jean-Pierre Melville.

O Samurai representa um casamento inegavelmente absoluto entre duas vertentes contextualmente distintas da cinematografia mundial: o policial noir norte-americano e a nouvelle vague francesa. Absoluto porque, em todo o decorrer da trama, a direção sofisticada, irremediável e empíricamente densa de Melville não consegue se desvencilhar das características fundamentais de ambos os estilos. O desenrolar das investigações, que se aprofundam, por parte da polícia, na tentativa de desmascarar o álibi construído por Costelo para se esquivar da culpa no crime, mantém a tensão e o requinte recorrentes em grande parte das obras-primas do noir, mas sem deixar de lado a inteligência absurda com que se desenvolvem o caráter e as relações pessoais administradas pelo alvo místico das miras policiais. É um filme com a astúcia de um Welles e a multifacetação emocional de um Truffaut, sem exagero algum.

E é acerca do senso de compromisso (moral, imoral ou amoral) irremediável sobre sua ética profissional, creditado metaforicamente aos supracitados (inclusive pelo título da obra) samurais orientais, que Costelo irá escrever todo o seu futuro. Após ser salvado da prisão por uma pianista que negou ter reconhecido seu rosto como sendo o homicida em questão (com o advento extremamente perspicaz de Jeff saber que ela está mentindo, que lembra exatamente de seu rosto por ter topado cara a cara com ele na cena e horário do crime), o metódico profissional precisa contornar as suspeitas policiais, se esconder dos homens que o contrataram, que acreditam terem sido entregues à polícia (e que, mais tarde, lhe concedem uma missão derradeira), e administrar ao mesmo passo sua relação de devoção e afeto à principal personagem feminina da obra - mas o centro das atenções, antes de qualquer outra coisa, é a relação de Jeff Costelo consigo mesmo, administrando sua postura de lobo solitário que premedita o próprio fim.

Para dar forma a toda essa profundidade moral, Melville aposta em uma fotografia acinzentada, urbana, mas ao mesmo tempo comedida, que dá espaço a planos requintados e inegavelmente charmosos - auxiliados pela não menos inegável charmosidade da atmosfera construída através da cadência ritmica precisa e do tom denso, amargo, utilizado pelo diretor. Os movimentos de câmera, em contraponto, revelam uma sutileza imprescindível, apesar da onipresença quase absoluta. O olhar constantemente congelante de Delon, que alcança aqui uma das caracterizações mais sensacionais do cinema, sintetiza a disciplina estética de Melville e comunica seus habitos e sentimentos sem necessidade de reforço de qualquer outra natureza. No final das contas, depois de uma resolução amarga e lírica na mesma medida, linda de morrer, O Samurai se revela facilmente como um dos filmes mais emblemáticos - e maravilhosos - do subgênero policial - e, inclusive, da própria nouvelle vague.

Que Truffaut que nada, pessoal. O mestre da sensibilidade nouvellevaguiana é Melville, o "maluco dos thrillers policiais".

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