quarta-feira, 26 de março de 2008

Senhores do Crime (David Cronenberg, 2007)

Quando acreditava ter concluído todo o seu serviço da véspera natalina, a jovem enfermeira Anna recebe um convite. Não um convite qualquer, mas a chave de um portal. Ou melhor, um bilhete. Um bilhete de loteria, cujo prêmio mórbido, porém irresistível, transportaria seu pequeno corpo a um universo misterioso, de clima pesado, aterrador, onde as sombras guardam segredos que nem mesmo a luz consegue decifrar. Mas não se trata de um outro mundo. E Anna sente. Estranha. Investiga. E descobre: acabara de conhecer, simplesmente, um pequeno canto de seu já tradicional terreno, encoberto por um manto invisível que separa a sua, dessa nova realidade.

Em mais uma de suas viagens alucinantes ao interior da mente e da carne humana, o genialíssimo diretor David Cronenberg promove um pequeno mergulho em um submundo ainda mais obscuro do que o que fora apresentado em sua última obra-prima, o multifacetário Marcas da Violência. Senhores do Crime, tradução medíocre de Eastern Promisses (Promessas do Leste, perspicaz e bem aplicado), retrata a passos curtos uma introspectiva jornada através das ruas escuras e estreitas de uma Londres submersa em pessimismo, protagonizado por uma enfermeira cujo objetivo é descobrir o paradeiro da família de uma prostituta mirim que acabara de falecer durante um parto.

Senhores do Crime representa, possivelmente, o ápice de uma inusitada fusão entre o cinema de gênero e a marca de autor deste doentio psicanalista canadense. Estruturado impecavelmente sobre as principais características de um thriller de máfia, este novo projeto de Cronenberg, na realidade, e como de costume em quaisquer obras do diretor, apresenta-se, conforme passam os minutos, como um conto complexo e mistificado plano a plano. Um conto daqueles que merecem ser descascados a mão, com longo tempo de trabalho. Daqueles que, a cada volta dada pelo ponteiro do relógio, remodela completamente a sua face.

E é no diálogo impecável com seu discurso que a narrativa desta nova obra de arte cronenebergiana funciona tão bem. Atirando sua protagonista dentro da violenta atmosfera das relações mafiosas (lembrando que até mesmo o foco do protagonismo transgride de Anna para Nikolai conforme a relação entre os dois se desenvolve), o canadense apresenta uma realidade podre, miserável sob os aspectos mais salientes da conduta humana, preparando o terreno para a construção de uma pequena parábola sobre a transgressão física e moral de suas peças dentro do território que tão bem consegue armar ao longo dos 90 minutos que antecedem o desenrolar definitivo (e, ao mesmo tempo, mais indefinido do que nunca, pela dualidade de sensações e, principalmente, de significados que resguarda) desta jornada alucinante.

2 comentários:

Anônimo disse...

Ótimo texto, Dan. Pena mesmo o Multiplot! não contar com isso de início.

Aliás, ficou parecendo que até combinamos, haha.

Daniel Dalpizzolo disse...

sim, ahaha. mas foi exatamente pelo fato de vc ter postado aquilo que eu lembrei ter isso guardado por aqui.

e é uma pena o multiplot! estar estancado mesmo. tinha alguns textos ótimos pra essa primeira edição, inclusive o seu sobre onde os fracos não tem vez, que eu acabei não me segurando e lendo mesmo sem ter visto o filme (mesmo pulando coisas obviamente spoilerianas) - coisa que eu nunca faço.